Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Deserto Particular

Uma história de amor em tempos de ódio

por Bruno Botelho

Deserto Particular é o representante do Brasil na disputa por uma vaga na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar 2022, deixando para trás outras produções nacionais aclamadas como 7 PrisioneirosCabeça de Nêgo e Doutor Gama. O filme comandado por Aly Muritiba (nome conhecido por seu trabalho em Nóis por NóisFerrugem e, mais recentemente, a série documental sobre o Caso Evandro) se destaca por sua sensilibidade necessária em um Brasil tão dividido atualmente, principalmente pela sua história de amor e de como ele pode transformar a vida das pessoas. Mas de que se trata o filme?

Em Deserto Particular, Daniel (Antonio Saboia) é um policial exemplar, mas acaba cometendo um erro grave que coloca em risco sua carreira e sua honra. Quando nada mais parece o prender a Curitiba, ele parte para uma viagem pelo país em busca de Sara, uma mulher com quem se relaciona virtualmente. Ele então mergulha em um intenso processo interno para aprender a lidar melhor com seus próprios afetos.

Experiências de vida, contrastes e afetos em Deserto Particular

No começo de Deserto Particular, Daniel está perdido em sua vida, lidando com um pai idoso que precisa de cuidados constantes e com sua carreira policial ameaçada depois de participar de um episódio violento que ganha destaque na mídia nacional. Em meio a todo esse caos, a única coisa que parece manter ele vivo é Sara, uma mulher com quem troca mensagens, mas nunca conheceu pessoalmente. Quando ela para de responder suas mensagens, Daniel decide viajar de carro em mais de 2.500 mil quilômetros de distância para encontrá-la, saindo do sul do Brasil, Curitiba, para o nordeste em Sobradinho, na Bahia.  

Com essa história de fundo, o roteiro de Henrique Dos Santos e Aly Muritiba desconstroi progressivamente seu protagonista ao mesmo tempo que mostra as diferenças e contradições do Brasil. Daniel faz parte de uma corporação policial, um mundo opressivo e patriarcal que moldou sua personalidade, então o filme aborda e critica a violência policial na sociedade – ainda que isso não apareça em tela e sirva como um elemento de construção de personagem. Provavelmente o maior acerto de Deserto Particular é não se aproveitar de um simples esteriótipo da figura violenta, mas trabalhar com todas as complexidades dele, principalmente com a desconstrução de sua masculinidade quando entra em contato com Sara.

Os contrastes culturais brasileiros e as diferentes experiências de vida ficam visíveis e se chocam quando o protagonista parte nessa espécie de road movie pelo país. Justamente quando o Brasil está dividido e lutando contra suas próprias contradições em um governo com práticas conservadoras, o filme prega a empatia e tolerância na história de amor, nada clichê, entre Daniel e Sara, dois personagens distintos, mas com elos profundos capazes de transformar as pessoas e suas vidas – o personagem principal, por exemplo, passa a se compreender melhor aos poucos e aceitar quem ele é, não quem foi criado para ser, o que amplia ainda mais o debate da produção para questões sobre as vivências no universo LGBTQIA+.

Deserto Particular é uma história de amor e transformação interior 

Eu realmente preciso de você hoje à noite. A eternidade vai começar essa noite

Essa frase acima faz parte da letra de "Total Eclipse Of The Heart", da cantora Bonnie Tyler, música romântica que embala o filme e consegue representar muito a relação afetuosa entre seus personagens. O título do filme, "Deserto Particular", também conversa com isso: todas as pessoas enfrentam seu próprio deserto com medos e anseios na vida, mas o que torna ela interessante de ser vivida são as conexões e experiências que acumulamos ao longo do tempo, que moldam nossa personalidade para sempre. Bonnie Tyler sabia muito bem disso, e encarava o amor como transgressor e elemento para mudança interior e, consequentemente, o nosso olhar para o restante do mundo. O filme brasileiro também utiliza desses elementos em sua trama, pois é exatamente disso que os seus personagens precisam, acima de tudo.

No centro dessa história, conhecemos um policial fruto de um sistema opressivo e violento, que tem sua masculinidade tóxica confrontada pelo amor, o que transforma a espiral de sofrimento em sua vida e lhe faz entender sobre si mesmo e suas relações de afeto. Não vou entrar em spoilers neste texto, mas do outro lado do romance encontramos Sara, que também luta para sobreviver e ser livre, o que para ela significa sair de sua prisão em sua vida atual na sua comunidade, e alcançar a plenitude de apenas ser ela mesma. No final das contas, Aly Muritiba valoriza o amor em Deserto Particular, em todas as suas formas.

O trabalho de Muritiba cresce com ajuda da exuberante cinematografia de Luis Armando Arteaga, que contribui exatamente com o que a temática principal precisava: envolve e constroi a história de amor com muitas cores e sombras profundas, além de evidenciar os contrastes entre dois mundos completamente distintos: a atmosfera fria do sul do Brasil, que combina a personalidade mais fechada de Daniel, e o clima mais ensolarado do nordeste, que reflete progressivamente o romance que rodeia seus personagens principais. Toda a sensibilidade temática do filme não seria a mesma sem suas atuações intensas e envolventes, com destaque para as performances tanto de Antonio Saboia quanto Pedro Fasanaro.  

Vale a pena assistir Deserto Particular?

Deserto Particular se mostra uma escolha interessante para representar o Brasil na disputa por uma vaga na categoria Melhor Filme Internacional no Oscar 2022. O filme trata de questões sociais e políticas importantes, como outros filmes nacionais fizeram anteriormente no Oscar, por exemplo os aclamados O Pagador de Promessas e Cidade de Deus. Ao mesmo tempo, ele não deixa de ser um retrato de vivências e encontros de uma cultura brasileira tão diversa, focando em como o amor pode transformar vidas.

No final das contas, Deserto Particular é uma história de amor e encontros inesperados que nos reconectam com nós mesmos e nossas emoções. Em tempos de tanto ódio no mundo, o diretor Aly Muritiba apresenta um filme sensível e universal sobre como o amor pode transformar vidas e libertar as pessoas de suas próprias prisões pessoais, ao mesmo tempo que aborda as diversidades sociais e culturais no Brasil buscando um futuro mais tolerante e compreensivo com as diferenças de cada um.