O filme fora do filme
por Bruno CarmeloConsiderando as histórias contadas pelos personagens, nós acreditamos estar em uma aventura épica, medieval, povoada por um rei tirânico, sua amante possessiva, guerreiros em busca de escravos, pastores miseráveis e seres mágicos que se alimentam de sangue humano. As cidades têm nomes estranhos, os personagens sofrem de poderosas doenças, em reinos distantes e desconhecidos.
Na imagem, entretanto, nada disso é visto. Existem em cena apenas quatro personagens, em uma planície aberta, do início ao fim. Eles correm de um lado para o outro, se cruzam e se procuram, falando sobre estas grandes aventuras. Por um Lugar ao Sol é um filme absurdo e conceitual, no qual o humor nasce do abismo entre as jornadas sugeridas e a banalidade retratada. Som e imagem se contrastam, e a trama épica se constrói apenas na mente do espectador. Este é um filme em voz indireta, um filme sobre outro filme.
O espectador é deixado nesse curioso limbo, vendo os personagens dialogarem sobre temas que atravessam tanto as histórias medievais quanto a sociedade capitalista atual: a exploração dos mais fracos, o trabalho forçado e mal remunerado. Nasce uma ironia desta metáfora, deste realismo poético que consiste em ver nas relações sociais modernas algo tão absurdo quanto um conto fantástico.
Os ótimos personagens contribuem a essa comédia da luta de classes. Trata-se de quatro pessoas submissas: uma cabeleireira descontente com o trabalho, um pastor de "ounayes" (animais inexistentes) explorado por seu “dono”, um assassino que tentou lutar contra o sistema e hoje é perseguido (interpretado pelo próprio diretor, Alain Guiraudie) e um guerreiro que apenas acata ordens dos superiores.
Apesar de sua estrutura teatral, é apenas no cinema que Por um Lugar ao Sol pode atingir o ápice da sua contradição – e da sua comicidade. Afinal, o cinema poderia representar, de maneira realista, todas as histórias contadas, com castelos, centenas de figurantes e muitos efeitos especiais. Mas ao esconder todos esses elementos da imagem, cria-se um faz de conta, uma brincadeira voluntariamente precária. Por isso mesmo, a trama se conclui quando os quatro pobres ambulantes (o título original é “sol para os mendigos”) encontram um elemento que poderia ser finalmente visto pelo espectador: o rebanho perdido de "ounayes". Fora de quadro e do olhar do público, os animais representam o limite entre a narrativa oral e visual, ou ainda entre o teatro e o cinema.
(Atenção: spoilers!)
Por isso mesmo, antes que as ounayes apareçam na imagem, o filme termina, abruptamente. Não é possível, de maneira alguma, traduzir em imagens este mundo imaginário. Como as histórias inventadas pelos pais aos seus filhos, antes de dormir, Por um Lugar ao Sol rejeita a característica mais forte do cinema: seu aspecto fotográfico, indicial, representativo. Com pouquíssimo dinheiro, muito senso político e criatividade artística, Guiraudie criou uma comédia fantasmática, existente apenas na imaginação.