Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Firebrand

Seis é o número da sorte?

por Katiúscia Vianna

Algumas situações levam todos os brasileiros a se unirem para serem patriotas. Uma opção, claramente, é a Copa do Mundo. Outra é ver o sucesso de talentos nacionais em terras estrangeiras - afinal, não é à toa que o Brasil foi um dos mercados mais lucrativos para o Besouro Azul de Bruna Marquezine. Logo, foi com grande alegria que a comunidade cinéfila recebeu a notícia que o talentoso cineasta Karim Aïnouz estava ampliando seus horizontes e produzindo um filme em língua inglesa. Mas será que a estreia com Firebrand foi a escolha certa?

Qual é a história de Firebrand?

Firebrand acompanha Katherine Parr (Alicia Vikander), a sexta e última esposa do temido rei Henry VII (Jude Law). Apesar do passado conturbado de seu marido, a rainha parece estar confortável na posição, assumindo o controle da Inglaterra enquanto seu marido está na campanha da guerra contra a França. Por sua vez, o país não vai nada bem, com a praga se espalhando e o crescimento de revoluções de protestantes.

Uma dessas “rebeldes” é Anne Askew (Erin Doherty), amiga de infância de Katherine, que entra na lista de inimigas do rei. Tentando ajudá-la e com pensamentos considerados liberais demais, a própria rainha passa a correr riscos na corte - já que seu marido paranóico é conhecido por mandar matar (ou, no melhor caso, expulsar) suas esposas se elas “fogem da linha”.

Firebrand é uma nova visão sobre a história

Provavelmente, você já ouviu falar em Henry VIII. O monarca até teve uma série focada nele,The Tudors. Afinal, como o próprio Firebrand anuncia, a história sempre foi focada nos homens. Dentre suas seis esposas, a mais conhecida deve ser Anne Boleyn, só porque ganhou fama de ser a “adúltera que seduziu o rei” a ponto da Inglaterra romper com a Igreja. Ou seja, não foram muitos os elogios (ou até mesmo atenções) destinados para elas. Típico.

Vamos a uma breve aula só pra deixar todo mundo na mesma página: Catherine of Aragon? Expulsa. Anne Boleyn: Teve a cabeça cortada. Jane Seymour? Morreu no parto. Anne of Cleves? Expulsa. Katherine Howard? Teve a cabeça cortada. Consegue ver uma tendência aqui? Chega então Katherine Parr. Ela acompanhou Henry em seus momentos finais da vida, quando já estava doente, acima do peso e mais paranóico ainda. Logo, imagine o medo que essa mulher deve ter sentido ao casar com um homem de tamanho histórico. E a direção de Karim Aïnouz acerta ao mostrar essa frequente tensão durante todo o filme, onde toda a personalidade e inteligência da rainha é ameaçada pelo medo frequente da morte.

Mesmo assim, o filme mostra como Katherine (eu sei que ele casou com 3 Katherines, mas a partir de agora estarei sempre me referindo assim a Parr) era boa em seu papel de rainha. Ela cuidou dos filhos de Henry como se fossem seus, era adorada por muitos e até chegou a publicar um livro com seu próprio nome, sendo a primeira mulher inglesa a fazer isso. Mas, como sempre, mulheres inteligentes demais ameaçam a frágil masculinidade de homens fracos. E aí, surge o perigo. Mas como ela conseguiu sobreviver?

O que falta em Firebrand?

É nesse momento que Firebrand toma suas liberdades criativas, fugindo da história real para dar mais independência para sua protagonista. Adaptação do livro de Elizabeth Fremantle, “Queen's Gambit” (sem ser a série da Netflix), o longa destaca a guerra política entre os aliados e inimigos de Katherine numa trama de intrigas que deixa a discussão entre seus tios durante o churrasco familiar no chinelo. Mas mesmo construindo tudo certo, ainda falta uma certa dose de emoção no filme.

Obviamente, ele se adequa ao semblante contido da protagonista, mas carece de algo que cause impacto como essa história deveria causar. E não estou falando de momentos chocantes, pois são várias as cenas asquerosas com Henry abusando de sua esposa, ou closes na perna machucada e fedorenta do rei. Mas falta vivacidade, o que nós sabemos que Karim Aïnouz consegue entregar - até mesmo nas sutilezas, como visto em A Vida Invisível.

Tecnicamente, sua equipe fez tudo certo. Os figurinos são incríveis, o design de produção transmite uma certa viagem no tempo e até a trilha sonora merece um destaque. Mas o resultado final acaba deixando o espectador meio passivo diante de tudo..

Alicia Vikander e Jude Law estrelam Firebrand

No geral, Alicia Vikander faz um bom trabalho como Katherine Parr, equilibrando o lado maternal pelo qual ficou conhecida entre os súditos, mas também carregando um lado mais independente. Apesar de estar contida por boa parte do filme, a vencedora do Oscar por A Garota Dinamarquesa (mas que, no meu coração, levou por Ex_Machina) brilha mesmo quando é capaz de expressar seu desespero.

Por outro lado, Jude Law está asqueroso, no melhor sentido possível. Seria fácil cair no estereótipo do rei maluco e violento, mas o ator traz uma naturalidade brutal para o personagem - que tem fetiche de enfiar seus dedos sujos em tudo que é lugar. Ele mostra, mais uma vez, que sabe fazer uma faceta bem diferente de Dumbledore, e também fugir do estigma sedutor que carregou ao longo da carreira.

Ao mesmo tempo, Firebrand ainda traz alguns personagens coadjuvantes bem interessantes: Simon Russell Beale (Thor: Amor e Trovão) é bem odiável como o bispo Gardiner, inimigo de Katherine. Já a novata Junia Rees consegue expressar o princípio da força que sua Elizabeth terá um dia como rainha. Por fim, também fiquei feliz de Erin Doherty ter mais papéis depois de roubar a cena em The Crown.

Vale a pena ver Firebrand?

O filme de Karim Aïnouz carrega a modernidade em sua história, trazendo uma nova visão para uma figura que merece mais atenção em nossa história. Mas mesmo cumprindo todos os requisitos técnicos, Firebrand prova como a arte precisa ir além do ângulo objetivo. Muitos vão curtir o jogo de intrigas do filme, que ganha pontos por revitalizar Katherine Parr para um novo público. Porém, essa rainha poderia ter sido muito mais explorada, afinal tem sua própria história para contar.

Felizmente, a arte tem espaço para todos - inclusive aquelas que foram reprimidas por uma sociedade injusta. No final, aprendemos que Henry VIII precisava se sentir amado e no controle, mas Katherine Parr nunca precisou desse rei doentio para ser completa. Ela é uma sobrevivente.

* O AdoroCinema conferiu esse filme no Festival do Rio 2023.