Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Corta!

Não existe limite para a arte do improviso

por Aline Pereira

A escolha de um filme tão sanguinário e de humor duvidoso para abrir a edição de 2022 do Festival de Cannes certamente foi o primeiro passo para que a sessão de Coupez! fosse tão cheia de risadas - tão desconfortáveis, quanto sinceras. Remake do filme japonês de 2017, o longa dirigido por Michel Hazanavicius (cineasta que assina o vencedor do Oscar O Artista) faz quase uma homenagem aos filmes de baixo orçamento e encontra um caminho original para contar uma história que já nasce fadada ao fracasso - mas que triunfa na própria derrota. Não parece, mas faz sentido.

Coupez!, que recebeu o título de Final Cut em inglês, acompanha um grupo de atores que está produzindo um filme de zumbi cuja principal missão, dada pelos produtores do longa, é ser “rápido, bom e barato” - uma combinação de características que, assim como na vida real, raramente dá certo. Com esta premissa, começamos a acompanhar os bastidores desta filmagem, que começa muito esquisita: por que os atores franceses têm nomes japoneses? Por que a maquiagem do zumbi é tão feia? Por que o elenco repete diversas vezes as mesmas falas? 

É com este estranhamento que Michel Hazanavicius nos envolve em uma trama que é, essencialmente, sobre o próprio cinema e que vai do realista ao absurdo -e vice-versa- em passos rápidos. Durante a filmagem do filme fictício dentro do filme real (com o perdão da repetição), alguns fenômenos inicialmente inexplicáveis começam a acontecer com a equipe, ao mesmo tempo em que vemos um clima de egos altíssimos e muito estresse - dos atores insatisfeitos com o roteiro ao diretor irritado porque parece ser o único levando o trabalho com seriedade.

A arte do improviso 

Nesse imbróglio, a saída encontrada é o improviso para tudo o que dá errado - e muita coisa dá errado em todos os sentidos. Dos recursos mais básicos aos dramas mais profundos dos personagens, Coupez! mostra que sempre há um “jeitinho” para contornar as adversidades, mesmo que às vezes o resultado seja desastroso. O diretor fictício, interpretado por Romain Duris, já começa a trabalhar em desvantagem não só porque tem poucos recursos para desenvolver seu filme, mas também porque está refém de decisões executivas questionáveis que tornam a história uma colcha de retalhos (estou falando com você, Esquadrão Suicida). 

Ainda assim, o personagem se mantém firme na vontade de tornar aquele projeto bem-sucedido pelas mais diversas razões, da auto afirmação profissional às questões familiares - vale notar que a esposa e a filha de Michel Hazanavicius na vida real interpretam a esposa e a filha do diretor fictício. Em Coupez!, o cineasta vive um momento conturbado em casa que é agravado pela própria dedicação que ele tem à arte. Um assunto que, é de se imaginar, deve fazer parte da vida de muitos profissionais da área - Hazanavicius, ao menos, faz tudo parecer muito pessoal, o que nos faz criar mais simpatia pelos personagens. 

É interessante notar até mesmo a cutucada não tão discreta que Coupez! dá na indústria do cinema que usa e abusa de remakes e que aproveita partes de boas ideias para recontar as mesmas histórias. Não é difícil lembrar de alguns filmes orientais, por exemplo, adaptados pelo ocidente, especialmente no gênero de terror, como O ChamadoO Grito e o próprio Cut of the Dead, o filme japonês do qual Coupez! é adaptado. 

A graça do caos 

Coupez! me pareceu, antes de tudo, um filme muito simples para quem tem o riso mais solto. O humor escrachado não requer nenhum tipo de “refinamento” do público e nos faz rir de vergonha alheia, do absurdo e do caos - uma clima que lembra bastante The Office. Para quem gosta desse tipo de humor, o longa francês é um prato cheio porque faz uma escalada bem feita nas situações: à medida em que tudo começa a dar errado, a paciência do elenco e do diretor é testada constantemente e a graça está na reação deles às situações inesperadas. 

Como nada parece ter muitas regras a serem seguidas, os acontecimentos surpreendem, assim como as explicações para todas as questões pontuadas lá no início. Não é que o longa traga grandes inovações, mas subverte as expectativas em momentos que pegam o público desprevenido e que provocam o “riso de nervoso”. O caos fica ainda mais desesperador com os banhos de sangue que acontecem durante a história, como seria de se esperar de um filme de zumbis. A questão aqui é que os ataques têm motivações muito peculiares e o terror surge por vias que surpreendem. 

Coupez! nos coloca em um trem descarrilhado e nosso papel, como público, é admirar a viagem para ver até onde ela vai. Até onde o diretor vai conseguir sustentar o projeto, até onde vai a tolerância da equipe que está por trás de tudo e, principalmente, qual é o limite de todo esse improviso. A curiosidade para ver o resultado deste projeto é o ponto mais atrativo. 

Se, por um lado, a parte do público que ri mais facilmente vai se entreter com a história, aqueles que não embarcarem nos aspectos mais ridículos provavelmente vão ficar entediados. Coupez! se apoia completamente, o tempo inteiro, na mesma piada (sobre o improviso) e não elabora um enredo muito além disso, mesmo que a trama evolua constantemente. 

A repetição das situações (no sentido de serem sempre provocadas pelos mesmos motivos) pode até ser um pouco irritante para quem não conseguir se conectar com os personagens apresentados. Em poucas palavras: se você não achar graça da primeira piada, provavelmente, não vai gostar de mais nenhuma nas próximas duas horas.  

Além disso, toda a “moral da história” também tem um problema: em alguns momentos, há a sensação de que Coupez! está sendo irônico para disfarçar os próprios defeitos. O filme age como se tirar sarro de produções mal feitas o tornasse automaticamente livre de críticas sobre sua própria produção. Pode parecer um pouco de presunção. Ainda que o filme aponte o dedo para o surgimento incansável de remakes que deturpam as histórias originais e que faturam alto em cima delas, Coupez! também tem um pouco disso, afinal de contas.