Um conto moderno (e hilário) sobre luta de classes
por Diego Souza CarlosNormalmente, narrativas cinematográficas que colocam o público em um campo de torcida são baseadas em histórias de superação ou apresentam vínculos com algum esporte. Apesar de se encaixar no primeiro grupo, de forma indireta, Dinheiro Fácil é praticamente universal ao apresentar facetas tão relacionáveis que poucos chegarão ao seu desfecho sem algum nível de envolvimento emocional.
O título do filme, é claro, pode deixar muita gente curiosa sobre como essa trama se estabelece. Primeiramente, é importante dizer que trata-se de um projeto baseado em uma história real recente. Em segundo, mas não menos importante, é um tipo de longa-metragem que provavelmente tocará neste tema sensível da situação financeira. Fechando as breves apresentações, pode-se dizer que essa é uma das comédias mais inusitadas da temporada.
Dinheiro Fácil acompanha a virada crucial na vida de pessoas comuns que, inspiradas por um único indivíduo, conseguiram desafiar Wall Street. Keith Gill (Paul Dano), um jovem investidor com certo alcance no Youtube e em redes sociais, decide apostar tudo o que tem na GameStop, uma lojinha de videogames de shopping.
Durante o período caótico da pandemia, com uma filha pequena e contas para pagar, ele decide arriscar suas economias e aplicar todo o seu dinheiro nas ações da empresa que já estava fadada ao esquecimento. Dessa forma, ele acaba conquistando uma legião de seguidores, e o que começou com uma ação isolada acaba se tornando um verdadeiro movimento contra Wall Street.
Equilíbrio narrativo em tempos de incerteza
Nas mãos de Craig Gillespie, cineasta conhecido por dirigir Cruella, Pam & Tommy e o elogiado Eu, Tonya, a trama verídica ganha vida de maneira simples, original e poderosa. Há um equilíbrio sutil entre os momentos de drama e comédia, gêneros que se misturam a todo momento, enquanto as flutuações da bolsa de valores criam possibilidades na vida dos personagens.
Filmar uma história que retrata um dos momentos mais tenebrosos da história recente não é uma tarefa simples. Sem criar juízos de valor sobre qualquer questão, mas deixando clara a gravidade da pandemia de COVID-19, o realizador consegue invocar uma delicada conexão do público com a trama assistida.
Para criar essa rede de identificação, os roteiristas Lauren Schuker Blum (Sue), Rebecca Angelo (Orange is The New Black) e Ben Mezrich (A Rede Social), que escreveu o livro que deu origem ao filme, decidem expandir a trama com pequenas inserções de pessoas periféricas à narrativa principal - todas elas impactadas pela decisão e determinação do protagonista.
Apesar de estarem ali para conquistar a simpatia da audiência e trazer esse aspecto relacionável, estes indivíduos surgem em tela também para corresponder às diferentes realidades de quem pertence a uma única nação. Pessoas com estilos de vida completamente diferentes, com origens, religiões e culturas distintas. A partir delas, é visto como, de fato, a ação de uma única pessoa pode reverberar positiva ou negativamente na vida de uma comunidade. Isso se aplica tanto para os “mocinhos” quanto para o time de bilionários que brincam com a vida alheia.
O aprofundamento destes coadjuvantes da vida comum não é tão generoso quanto na história de Keith, mas podemos acompanhar ótimas performances de America Ferrera como a enfermeira que precisa lidar com o surto da pandemia enquanto está cheia de problemas financeiros e Anthony Ramos interpretando um vendedor uma unidade esquecida da GameStop.
Parte do charme que engloba Dinheiro Fácil não está apenas neste emaranhado de histórias, mas é mérito de uma edição ágil e pop que reúne elementos audiovisuais vibrantes a um filme que facilmente poderia ser morno. Manchetes reais, trechos de noticiários, a visualização do patrimônio líquido de cada personagem e vídeos de redes sociais que demonstram os níveis de ânimo dos civis que toparam enfrentar Wall Street pipocam na tela. Isso enriquece o enredo através de um criativo uso da linguagem cinematográfica.
Além dos astros de Barbie, Batman e Transformers: O Despertar das Feras, o elenco ainda conta com Pete Davidson, Vincent D’Onofrio, Nick Offerman, Sebastian Stan, Shailene Woodley e Seth Rogen. Essa reunião de astros ainda cria uma atmosfera esperançosa quando é envelopada pela trilha sonora. Faixas de Kendrick Lamar, Cardi B e Megan Thee Stallion, por exemplo, auxiliam a conduzir passagens dispostas em tela para avançar a história de todos os personagens.
Uma ode ao trabalhador
Em pleno 2023, após este período conturbado da pandemia, em que milhões de pessoas perderam a vida e outras milhões se viram cercadas de incertezas, é interessante acompanhar uma narrativa que gera um certo nível de esperança, mesmo que esteja sob o filtro de um parcial otimismo. Ao se colocar no lugar de algum dos trabalhadores representados ali, parte da audiência provavelmente estará nas arquibancadas imaginárias, torcendo pela vitória destas pessoas ordinárias.
Naturalmente, sabendo da premissa de Dinheiro Fácil, não é nada difícil interpretar que a trama se desdobra como um conto moderno sobre luta de classes. Enquanto bilionários excêntricos movimentam montantes de dólares sem nenhum peso emocional, a vida de indivíduos comuns continua resumida a trabalhar oito, dez, doze horas por dia para tentar pagar as contas, colocar comida na mesa e apoiar seus entes queridos.
Não que os intuitos de Keith fossem os mais nobres possíveis, não há um expressivo juízo de valor sobre suas escolhas, mas ele como parte dessa rede de trabalhadores sabe o drama de criar expectativas e se sujeitar aos papéis mais absurdos para, no fim dia, não ter acesso ao mínimo. Em uma trama que escancara a forma como o capitalismo adoece pessoas dia após dia, figurões são tratados de maneira caricata justamente para mostrar que não são invencíveis e muitas vezes não sabem o que estão fazendo.
É óbvio que este é um caso isolado entre muitos outros, mas é satisfatório ver que o levante do trabalhador num mundo moderno, através de celulares e transações financeiras que se resumem a números virtuais, ainda é possível. Através da comédia e da constante lembrança de que esta história tem a realidade na sua raiz, esta sátira do mundo pós-moderno se torna também um recurso artístico para que pessoas reflitam sobre o quão presas estão aos termos da sociedade.
Apesar de não ser nada fácil chegar às pilhas de dinheiros que muitos ali almejam, chega a ser encantador, em um mundo adulto cheio de burocracias e frustrações, assistir a um filme que demonstra de forma inusitada como a junção de trabalhadores - algo que pode se relacionar diretamente com a greve dos roteiristas em Hollywood e seu desfecho, por exemplo - é sempre benéfica para derrubar certos impérios que lucram a partir do suor alheio.
*Filme visto na Mostra de Cinema Internacional de São Paulo de 2023