Um filme sobre o homem e não sobre a lenda
por Rafael FelizardoNa cultura popular, Complexo de Napoleão é a denominação de um suposto transtorno psicológico de inferioridade que afetaria pessoas de baixa estatura. A expressão também é utilizada na descrição de indivíduos que são levados a compensar determinadas limitações pessoais ao transferir suas motivações para outros âmbitos da vida, superando adversidades que poderiam se tornar estigmas.
Constantemente descrito como uma pessoa de pouca altura, Napoleão Bonaparte, famoso estadista francês do século XVIII, não viveu o bastante para tomar conhecimento do conceito que ganhou seu nome, mas apresentou, ainda em vida, uma grande vontade de marcar seu título na história da humanidade - seja alimentado pelo complexo citado ou não.
Assim, três séculos depois, o diretor Ridley Scott resolveu reviver a herança de Bonaparte nas grandes telas de maneira original, contando, em Napoleão, com a ajuda de Joaquin Phoenix para o papel-título, Vanessa Kirby de coadjuvante e com uma trama que desconstrói um pouco do legado de um dos estrategistas mais famosos da história do mundo.
NAPOLEÃO NÃO É UM ÉPICO DE GUERRA
Na trama, acompanhamos um olhar pessoal sobre as origens de Napoleão Bonaparte e sua rápida ascensão a imperador da França. Contado através do prisma de seu relacionamento visceral - e muitas das vezes volátil - com a esposa e verdadeiro amor, Josephine (Kirby); ao mesmo tempo em que mergulhamos no calor das batalhas travadas - e vencidas -, também afundamos na cruzada romântica de um homem amplamente afetado pelo adultério da mulher.
Se em épicos baseados em fatos reais normalmente lidamos com o protagonismo de heróis inalcançáveis, símbolo de uma personalidade inquebrável e esculpido à imagem dos grandes mitos gregos, aqui, Ridley Scott optou por dar um outro espelho a Napoleão. No longa-metragem, somos apresentados a um homem falho, humano, que entre estratégias brilhantes contra britânicos e russos, encontrou na esposa a dualidade que assombrou parte de sua vida; uma relação de amor e ódio. Se durante as voltas para casa, pós-conflito e aclamado nos braços do povo, Bonaparte alcança o status de ídolo que sempre sonhou, a má notícia o aguarda dentro das quatro paredes que chama de lar, onde precisa lidar com a infidelidade de sua amada.
Além disso, o fato de Josephine não conseguir dar um filho - à época, símbolo da continuidade de um império - ao nosso protagonista, também desempenha papel primordial nessa relação dicotômica, ajudando a traçar uma linha, até certo ponto, entre o sucesso obtido lá fora, nos campos de batalha, e o revés dentro do lugar que deveria ser seu antro de paz: a própria residência.
Vale ressaltar que, nos últimos meses, alguns historiadores colocaram-se a questionar a veracidade de certos pontos da história contada por Ridley - ao que afirmo com todas as letras não estar preocupado. Aqui, olho única e exclusivamente para o recorte narrativo levado pelo cineasta às grandes telas.
O NAPOLEÃO DE JOAQUIN PHOENIX
Se nos parágrafos anteriores parece que a relação de Napoleão e Josephine era especialmente unilateral, informo que as coisas não ocorreram exatamente dessa forma. O personagem de Phoenix, inegavelmente, também não era um bom companheiro para a esposa, afirmando, muitas das vezes, sua vontade sobre a da cônjuge.
Mais uma vez, Joaquin se sai bem quando se depara com os opressivos holofotes hollywoodianos. Com uma atuação que mistura psicologia e fisicalidade, logo nos primeiros minutos de filme, vemos os maneirismos físicos do astro portar Napoleão como se fosse um menino reprimido, em uma espécie de Bonaparte definhado emocionalmente que seria um prato cheio para Sigmund Freud, famoso psicanalista austríaco.
Através de uma imaturidade que acaba sendo impossível não compará-lo a Arthur Fleck, personagem de Phoenix em Coringa, algumas sequências reforçam os lapsos de infantilidade da mente do gênio estrategista, que com tamanha ingenuidade acaba tomando atitudes inesperadas pelos espectadores - como quando confronta os ingleses com a pueril linha: “Você se acha tão bom por possuir barcos!”.
AS CONQUISTAS NAPOLEÔNICAS FICAM EM SEGUNDO PLANO
Vale colocar que se você procura um épico sobre grandes batalhas e mortes icônicas, este filme talvez não seja para você. Em suas duas horas e meia de tela (que com um ritmo corrido passam em um piscar de olhos), Napoleão até adentra os famosos conflitos vividos pelo general francês; apenas para apostar em tomadas visualmente bonitas que mais focam no lado dramático/poético dos duelos do que em qualquer outra coisa.
O lado apaixonado de Ridley Scott por uma boa fotografia também não decepciona, apresentando sequências de aparente técnica que enfatizam paisagens belíssimas, balas de canhão que machucam de maneira visceral e afogamentos em rios congelados pintados de vermelho-sangue.
Além disso, se as batalhas não soam tão cativantes, o longa, por diversos momentos, mantém um registro histórico dos mortos causados pelas investidas de Napoleão, reforçando, mesmo que de maneira indireta, o legado estatístico assustador do militar que Bonaparte foi.
A EXPERIÊNCIA NAPOLEÃO
Segundo David Chanteranne, autor do livro “Napoleão. Sua Vida, Suas Batalhas e Seu Império”, mais de 700 filmes sobre o imperador francês foram feitos desde a criação do cinematógrafo pelos irmãos Lumière. Figura polêmica de grande influência na Europa, Bonaparte inspirou inúmeros relatos de bravura, marcado por ser um exímio estrategista durante os combates.
Assim, quando Ridley Scott resolveu dar vida ao seu olhar sobre o estadista francês, ele e sua equipe já avisavam que a produção seria uma viagem pela percepção do diretor sobre a história. Napoleão flerta com um lado mais íntimo da lenda que talvez não saibamos até que ponto seja verdadeiro - uma viagem guiada pelo ego de um homem que possui uma relação edípica não resolvida, buscando na esposa a figura materna.
Com uma trama longa mas que movimenta-se rapidamente, a obra peca em apresentar uma montagem de certa forma anárquica, podendo confundir uma parcela dos espectadores que não conhecem os fatos históricos por trás da narrativa.
Logo, juntando tudo o que aqui foi dito, a experiência Napoleão, talvez, não agrade àqueles que buscam o general em toda a sua glória, mas certamente vale a pena a recomendação, principalmente por se tratar de um recorte ousado de um diretor que tinha muito a perder.