Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Decisão de Partir

Romance e suspense têm mais em comum do parece

por Aline Pereira

Se Instinto SelvagemUm Corpo que Cai tivesse um neto alternativo, seu nome seria Decision to Leave, filme do diretor sul-coreano Park Chan-wook. O longa foi um dos principais destaques do Festival de Cannes de 2022, com um troféu de Melhor Direção para Chan-wook, e uma das estreias mais aguardadas: após o impacto que causou com as obras-primas Oldboy e A Criada, era grande a curiosidade para descobrir de quantas outras maneiras (supostamente terríveis) o cineasta poderia nos surpreender de novo. E Decision to Leave consegue: não pelo choque explícito, mas pela rede de detalhes.

A trama começa quando o detetive de polícia Hae-jun (Park Hae-il) é convocado para investigar uma morte de circunstâncias misteriosas. O corpo de um homem foi encontrado ao pé de uma montanha, deixando a polícia dividida: o escalador caiu e morreu acidentalmente ou foi empurrado? Somos então apresentados à viúva Seo-rae (Tang Wei). Trata-se de uma figura enigmática, mas doce, que não parece nem um pouco abalada pela tragédia, chama atenção do detetive  e, claro, torna-se a suspeita número um do suposto crime.

O que se inicia então é uma escalada de obsessão: a princípio, o implacável e insone Hae-jun quer encontrar uma resposta para suas investigações - um assunto delicado para ele, que lida com alguns fantasmas profissionais do passado. Mas Seo-rae parece um alvo tão indecifrável que o detetive desenvolve com uma relação cheia de camadas, do encantamento à impaciência. É esta dinâmica que torna Decision to Leave um filme hipnotizante.

Decision to Leave tem uma fórmula secreta entre suspense e romance

A habilidade de Park Chan-wook para criar viradas em suas histórias coloca o diretor sul-coreano em um lugar especial do cinema porque seus mecanismos para causar surpresa vêm sempre carregados de elementos complexos. Os dois protagonistas estão o tempo todo numa corda bamba, prestes a tombar para um dos dois lados: inimigos ou aliados? E o ponto alto aqui é que, assistindo, fica difícil termos noção de quais seriam as consequências, tanto para um desfecho, quanto para o outro.

E se tomar um lado frente a uma situação dividida é um reflexo comum do ser humano, Chan-wook nos desafia: não parece haver resposta certa e nem um caminho mais lógico a se seguir. Como a trama é narrada a partir da perspectiva do detetive, é natural que nos deixemos levar pelas conclusões deles - até o momento, com a obsessão gradual pela mulher suspeita, em que fica difícil ter certeza do quanto a visão dele é confiável. E o que pode ser melhor do que isso para contar uma boa história de mistério?

A femme fatale está diferente

A comparação com Instinto Selvagem, vale dizer, fica no campo mais superficial das linhas gerais da história, na relação entre um detetive com suas particularidades e uma mulher misteriosa. Mas hoje, é claro (e ainda bem), a figura da femme fatale como conhecíamos nas décadas passadas não tem mais lugar e Decision to Leave vem para atualizar essa ideia e subverte o gênero do thriller erótico. A personalidade enigmática de Seo-rae não é um recurso para torná-la um objeto sexual inalcançável e sim o ponto mais central da narrativa.

Tão falha quanto nosso protagonista, a personagem aprende com a experiência que adquire ao longo do filme e se torna cada vez mais engenhosa. Seo-rae é fascinante porque fica claro que ela está longe de ser uma figura inatingível, mas dá trabalho entender que exatamente será capaz de perfurar suas defesas. “Às vezes é o suspeito quem tem as perguntas”, disse o diretor em coletiva de imprensa no Festival de Cannes 2022.

Vale ressaltar aqui também o trabalho da atriz chinesa Tang Wei: sem falar coreano na vida real, a artista supera quaisquer possíveis barreiras da linguagem com uma performance sensível, que coloca sua personagem no limite entre culpa e inocência. Não é difícil entender por que Hae-jun fica tão preso a ela - assistindo, nós também ficamos.

Decision to Leave complica demais o suspense?

São muitos os elementos que se amontoam sobre a cabeça de Hae-jun, que incluem também seus dramas pessoais e alguns pontos paralelos do trabalho. O início dessa escalada é altamente satisfatório porque nos leva junto para o desafio, mas é possível que a longa lista de elementos também incomode - a recompensa pela esforço da investigação demora para vir. Park Chan-wook aqui trabalha com uma adição de detalhes muito minuciosa e às vezes tão pequenos que passam despercebidos pelos olhares  um pouco menos atentos - o que pode atrapalhar o acompanhamento da história.

Sem spoilers, é claro, mas um desses elementos é a mudança (bastante) sutil na linha do tempo dos acontecimentos ou na integração de outros personagens na história. A sensação é de que perdemos alguma coisa no meio do caminho, mas se trata muito mais da escolha do diretor. Como o filme se apoia muito mais nos diálogos do que na ação (que também existe e é coreografada com a mesma precisão de Oldboy), pode ser frustrante a sensação de que faltam peças no quebra-cabeça, embora elas estejam todas lá.

Difícil caracterizar esse ponto como um problema do roteiro propriamente dito especialmente porque não representa prejuízo para o ritmo do filme - embora valha ressaltar que Decision to Leave segue um fluxo diferente das grandes produções de investigação hollywoodianas a que estamos acostumados a ver com frequência. A esta altura do campeonato, aliás, o sentimento de estranheza com o ritmo talvez não seja tão impactante como na época de Parasita: de lá para cá, produções asiátias fizeram sucesso nas telas e (ainda bem) abriram portas para deixar ainda mais claro que o modelo Hollywood não é o único capaz de causar estrondo.

Decision to Leave é também uma história de amor

Durante a entrevista coletiva no Festival de Cannes, uma fala do diretor Park Chan-wook, em especial, me chamou atenção porque diz muito sobre o espírito de seu novo filme. “As pessoas mostram quem são através do amor”, disse. É uma grande interpretação para o que acontece em Decision to Leave: fica para o espectador refletir sobre o tipo de amor que pode haver entre os dois personagens, mas é, sem dúvidas, o sentimento que revela quem eles são.