Onde começa a ficção?
por Ygor PalopoliExiste apenas uma coisa no mundo tão longeva quanto a própria comédia em si: a tentativa de entender seu propósito. Para alguns, fazer comédia e fazer rir são os únicos sinônimos que importam na equação, enquanto para outros, a razão pela qual se está rindo é muito mais relevante do que a própria graça. Em 2006, quando Borat - O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América foi lançado, a indústria da comédia, de certa forma, sofreu uma pequena revolução em Hollywood.
Com um tipo de humor muito específico, o filme trazia à superfície o subgênero do "falso documentário" apresentando a história de Borat, repórter do isolado país do Cazaquistão que ia até os Estados Unidos para uma matéria especial e passava por situações absurdas, constrangedoras e cômicas ao se acomodar com a cultura norte-americana e confrontar os cidadãos estadunidenses com costumes peculiares e diferentes dos seus.
Não cabe muito falar sobre o primeiro filme na crítica do segundo, mas é necessário contextualizar a razão pela qual Borat: Fita de Cinema Seguinte consegue tão relevante e, novamente, revolucionário para a indústria da comédia.
Veja bem, vivemos em uma cultura na qual não apenas a globalização se expande a passos largos e imensos, como também a estupidez e a desinformação tornaram-se razão de orgulho na disseminação de absurdos. Enquanto grupos que defendem questões absurdas, tais quais Terra Plana, movimentos antivacina, ideias retrógradas, teorias de conspiração governamentais, Borat 2 chega para mostrar que já não é necessário criar uma história de ficção para fazer comédia e evidenciar o óbvio: nós somos a piada.
Aqui, no enredo, entendemos que após os acontecimentos do primeiro filme o repórter do Cazaquistão acaba indo para a prisão no país por ter viralizado e enfraquecido a soberania do país diante do restante do mundo. Tudo segue normalmente, até que ele é chamado pelo líder máximo da nação e recrutado a enviar um presente especial ao vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence.
As coisas acabam dando errado logo no início e o repórter acaba improvisando, oferecendo sua filha como presente e a preparando para o grande momento. Aqui, existe a tênue linha do humor que é sempre envolta em controvérsias: onde termina a crítica e onde começa a reprodução? No caso, o filme encontra seu primor ao caminhar neste limite sem se preocupar muito com o lado onde vai cair.
Ainda assim, é possível encontrar a crítica em um sentido muito mais forte do que a reprodução, uma vez que a filha de Borat (em um excelente trabalho de Maria Bakalova) passa seus dias assistindo a um conto de fadas no qual o príncipe é uma caricatura de Donald Trump, tido como novo ideal de cavalheirismo e masculinidade, colocando o tão conhecido "sonho americano" em um novo e lamentável patamar.
O humor do constrangimento não agrada a todos os públicos e isso é completamente compreensível. Não gosto de usar a terminologia do "politicamente incorreto", já que hoje ela é uma tentativa de justificar piadas sem criatividade, sem efetividade e que se apoiam única e exclusivamente em racismo, homofobia e xenofobia.
Mas a grande virada de chave em Borat 2 é que boa parte das interações são reais, e isso torna o constrangimento um novo nível de sátira. Imagine assistir The Office e descobrir depois que boa parte daquilo aconteceu: seria a comédia cumprindo seu propósito máximo, que mistura o humor bem construído, a crítica ao absurdo social e a situação pronta para degustação.
E a importância da comédia também é presente para exposição dos culpados. No filme, em uma das interações, daquelas tão absurdas que já não sabemos mais dinstiguir se são reais ou encenadas, um dos principais advogados e aliados de Trump é interrompido prestes a realizar um ato sexual com a personagem que o estava entrevistando. Quando questionado posteriormente, ele relatou o que já era esperado que fôssemos ouvir: "fui tirado de contexto". Claro, não sem antes amaldiçoar o filme, alegando que ele representa tudo que existe de pior na humanidade.
No final, acaba tudo sendo uma questão de percepção. O protagonista fictício do excepcional Sacha Baron Cohen é uma piada que ganha vida, e esta é a evidência do quanto ele seria perigoso se fosse uma figura real. Piadas que ganharam vida hoje controlam algumas das maiores potências do país e estão por todos os lados na política, por isso Borat 2 se propõe a mostrar como esta questão não apenas é perigosa, mas também real e constante.
Borat é apoiado por extremistas que não acreditam em vacina; é apoiado por conservadores que aplaudem enquanto ele canta uma música sobre degolar médicos; é adorado quando diz que odeia a ideia de uma vacina contra o Coronavírus (vale lembrar que o filme se passa em nosso contexto real), mas logo depois é detestado quando a ironia se torna óbvia. O personagem é a prova de que nós não estamos tão longe assim do absurdo. Afinal de contas, nós somos a piada.