Um filme que era para ser mais
por Aline PereiraEm meio a tantas estreias de impacto no Festival de Cannes 2022, inclusive os principais vencedores da edição -Triangle of Sadness, Decision to Leave e Tori et Lokita -, Stars at Noon pareceu deslocado: o novo filme de Claire Denis, uma das cineastas francesas mais reconhecidas, é um romance histórico/político que não vai nem tanto para um lado, nem tanto para o outro. Margaret Qualley, protagonista de Criada, sucesso da Netflix em 2021, é um destaque excepcional e concentra nela mesma a intensidade do filme, mas, justamente por isso, parece um pouco “fora da história”.
Stars at Noon acompanha Trish (Margaret Qualley), uma jornalista norte-americana que não consegue sair da Nicarágua porque teve seu passaporte confiscado. Para sobreviver, Trish passa noites com alguns homens e faz alguns serviços em troca de dólares, além de beber muito. Sua história muda com a chegada de Daniel (Joe Alwyn), um petroleiro britânico - ao menos é que ele afirma ser -, que surge como um desconhecido, mas acaba se tornando uma grande paixão.
O filme é baseado no livro de mesmo nome, publicado em 1986 e ambientado durante a Revolução da Nicarágua, movimento popular que derrubou a ditadura no país. Mas Claire Denis faz uma mudança nesse cenário e coloca o filme mais perto dos dias atuais, durante a pandemia do coronavírus. Uma adaptação interessante que traz o clima de tensão mais para perto do público e aproveita o terror silencioso do início da Covid-19, com ruas vazias e vigias nas fronteiras.
Stars at Noon perde força ao longo da história
O início de Stars at Noon nos captura rapidamente: a rotina de Trish quase como “prisioneira” é caótica e se torna mais e mais estranha com a personalidade (ainda mais) caótica da protagonista. Trish, desesperada para juntar dinheiro e conseguir um passaporte, faz uso de todos os recursos que pode e se apresenta como jornalista onde vai - profissão que, descobrimos em seguida, não faz mais parte de sua vida tanto assim. Mas à medida que o tempo passa, esse ímpeto perde força: Trish não parece conectada ao mundo que a cerca.
A sensação é de que Stars at Noon devia ter um viés político bem mais forte: tanto por ter escolhido um cenário de repressão, quanto por ser estrelado por uma norte-americana “refém”. Mas, no fim das contas, essa parte da história fica mais na superficialidade para dar lugar ao romance cheio de cenas quentes entre Trish e Daniel. A questão é que o pouco aprofundamento acaba atrapalhando também a história de amor, que está muito ligada ao contexto em que os dois se encontram - isto é, a relação só acontece porque os dois estão vivendo um período tenso, mas essa tensão aparece muito pouco.
Ao se envolverem mais profundamente, Trish e Daniel acabam entrando em uma missão de perseguição e fuga, mas não parecem agir de forma muito realista para pessoas que estão em uma encruzilhada de vida ou morte. A situação dos dois é claramente grave e arriscada, mas na maior parte do tempo eles estão tão relaxados e absortos no próprio relacionamento que fica difícil sentir qualquer perigo de verdade. É como se o amor entre os dois fosse intensificado pela adrenalina da jornada de fuga, mas que só eles sentem.
Certamente, se esse sentimento chegasse mais fortemente a quem está assistindo, todo esse “amor arriscado” seria mais convincente. Mas é difícil se preocupar com o sucesso da missão dos dois se nem eles parecem muito empenhados nisso - tudo bem, Trish e Daniel estão inebriados e fascinados um pelo outro, mas a desconexão com o mundo real não faz muito sentido naquele cenário específico.
Atriz para ficar de olho: Margaret Qualley é um furacão
Margaret Qualley ganhou destaque pela primeira vez quando apareceu em Era Uma Vez Em… Hollywood, como uma das seguidoras de Charles Manson. Em 2021, conquistou o público com Criada, série em que trabalhou ao lado da mãe, Andie MacDowell, uma das principais estrelas dos anos 80. Sem dúvidas, Margaret tem uma carreira muito promissora pela frente e não é à toa: temos uma artista muito expressiva e carismática, que fez tudo o que era possível fazer com sua personagem.
Trish vive entre o medo e a despreocupação com a própria vida. Se embrenha entre pessoas perigosas, faz cobranças incisivas e, sempre com um aspecto alcoolizado, não parece ter muitos receios, ao mesmo tempo em que está claramente desesperada para conseguir seu passaporte. O surgimento de Daniel em sua vida aflora um lado que ela não parece estar habituada e não sabe muito bem como lidar.
Toda essa confusão é expressada brilhantemente por Qualley e se há um motivo primordial para dar uma chance a Stars at Noon é assistir ao trabalho dela. O que, por outro lado, também levanta um problema latente no filme: a falta de naturalidade e ligação entre o casal. Embora Trish e Daniel sejam muito apaixonados e sexuais, algo ali não nos convence - e vale destacar aqui ainda que o papel masculino esteve perto de Robert Pattinson (Batman) e de Taron Egerton (Rocketman) antes de parar nas mãos de Joe Alwyn. Suspeito que essa escolha tenha feito diferença.
Amor e revolução
No romance original de 1986, o romance e a revolução são intimamente ligados: a personagem que corresponde a Trish está muito envolvida no desenrolar da revolta e tem uma posição política mais forte - no filme, a protagonista até fala sobre o assunto vez ou outra, mas não parece tão ligada assim. O mistério em torno da verdadeira identidade de Daniel também tem relevância política, com um clima de espionagem mais tenso - pouco disso aparece na adaptação de 2022. Nem mesmo a aparição dos temíveis agentes locais é tão urgente ou letal quanto deveria ser.
Com todos os principais elementos colocados de jeitos tão sutis na história, Stars at Noon se torna uma atração para ser apreciada de maneira mais estética: o estilo e a linguagem visuais de Claire Denis são muito envolventes; tudo é, de alguma forma, sensual e envolvente. Uma combinação perfeita com a história que começou a ser contada, mas que foi ficando apagada enquanto avançava.