Ambicioso, porém, morno
por Rafael Felizardo“Muito disso realmente aconteceu.”
Para aqueles sentados confortavelmente em uma sala escura de cinema, talvez, a frase acima – responsável por abrir o longa – não signifique muita coisa, mas aos familiarizados com a filmografia do cineasta David O. Russell, certamente, ela expressa muito.
Aos que não se recordam, em 2014, Russell lançava Trapaça, um aclamado filme que apresentava dizeres parecidos em seu início. No enredo, o longa misturou realidade e ficção para entregar, de maneira ácida, uma investigação do FBI que acabou deflagrando um grande esquema de corrupção no governo americano. Hoje, mais de uma década depois, o diretor volta a estrear outra de suas crônicas com Amsterdam (protagonizado por Christian Bale, John David Washington e Margot Robbie), revivendo uma não tão conhecida tentativa de golpe fascista nos Estados Unidos da década de 1930, que mesmo não sendo ambientada em nossos dias, se faz mais atual do que nunca.
Personagens sólidos e um roteiro oscilante
Na trama, o espectador é apresentado à história de três grandes amigos: dois soldados e uma enfermeira que fazem um pacto de sempre olharem uns pelos outros, não importando o que aconteça. Após o maquinar de algumas engrenagens do acaso, eles se veem envolvidos no centro de uma investigação de assassinato, tornando-se os principais suspeitos do crime. Assim, para provar que não são responsáveis pela misteriosa morte de uma mulher, nossos heróis acabam participando de uma conspiração ainda maior, levando à luz uma das intrigas mais surpreendentes da história norte-americana.
Logo de início é possível perceber que os personagens principais de Amsterdam funcionam. Com um trio estrelado por alguns dos maiores nomes de Hollywood da atualidade; Bale, Washington e Robbie dão vida a figuras excêntricas que de cara conquistam a audiência, principalmente, por fugirem de clichês comuns aos protagonistas de blockbusters.
Dessa forma, vale a pena aplaudir a grande dedicação de Christian à sua arte, que como em O Operário, Batman Begins, Trapaça e inúmeras outras produções, mais uma vez, transforma completamente o seu corpo, agora, na pele de um ex-soldado com olho de vidro – que teima em ficar em seu lugar – lotado de carisma.
Ao tentar extrair o máximo de seu grande elenco, Amsterdam acaba se perdendo em termos de andamento, pecando em tentar encontrar tempo de tela e tramas para Anya Taylor-Joy, Zoe Saldana, Chris Rock, Robert De Niro, Rami Malek e – isso mesmo – Taylor Swift, e se afastando um pouco do que o filme tem de melhor: a grande sinergia entre o trio principal.
Com um roteiro oscilante, que por vezes torna-se cansativo exatamente pelo extenso número de personagens importantes indo e vindo, talvez o longa-metragem tivesse mais êxito em sua proposta se não houvesse a intenção de ser tão grande.
Amsterdam possui aspectos artísticos de encher os olhos
Se a narrativa do filme de Russell sofre com seus altos e baixos, em termos artísticos, o longa sobra. Aqui, o departamento de fotografia comandado por Emmanuel Lubezki (O Regresso) encanta com suas luzes, ora apostando em closes inspiradamente oníricos que dão um tom quase surrealista à obra, ora com uma ambientação situada em uma encantadora Nova York dos anos 1930.
Da mesma forma, em adição ao talento de Lubezki, Amsterdam nos presenteia com um figurino impressionante, capitaneado pelo lendário Albert Wolsky, o grande responsável pelo Oscar de Melhor Figurino de 1979, de O Show Deve Continuar.
Com tons em sépia e takes fluídos que ecoam bem diante dos olhos, a estética produzida pelo longa, por alguns segundos, nos faz esquecer algumas das dificuldades encontradas em seu script, reforçando um ditado francês que diz que "a beleza é uma carta de recomendação válida por pouco tempo”.
Uma trama política não tão política assim
Durante uma grande parte da história da humanidade, arte e política tiveram o costume de caminhar lado a lado. Através de títulos como Tempos Modernos, Milk, Faça a Coisa Certa, Cidadão Kane e outros, o audiovisual mundial viu algumas das mazelas da sociedade ganharem vida com grandes críticas nas grandes telas, levando aos holofotes assuntos que se fazem necessariamente discutíveis.
Logo, se Amsterdam tem em seu enredo uma trama que aborda temas como racismo, fascismo e higienismo, a proposta de Russell faz com que o filme não mergulhe tanto em um lado mais militante da sétima arte – o que não tem nada de errado. Através do humor característico do cineasta, o longa entrega uma fusão de real e fictício que por vezes parece ter medo de ser mais crítico, expondo, de fato, a necessidade de colocar tais assuntos em evidência mas voltado para a conquista de um público-alvo que procura algo diferente do cinema como política.
Amsterdam é um filme morno
Com altos e baixos em sua composição, Amsterdam é um dos melhores exemplos da alcunha “filme morno”. Lotado de elementos que remetem a David O. Russell, de cara é possível perceber que a produção contém a mão do diretor, o que é sempre uma grande vitória do ponto de vista técnico. Através de atuações que, propositalmente, beiram o caricato, vale ressaltar que as performances das inúmeras estrelas do filme podem incomodar àqueles não estão familiarizados com esse tipo de desenvolvimento.
Por fim, apostando em resoluções que reforçam o “o poder da amizade”, o longa pode ser considerado o projeto mais ambicioso de Russell, acompanhado de um toque de patriotismo sempre essencial para os americanos e desenvolvendo-se de um jeito tumultuado que acaba atrapalhando um pouco a experiência final.
E para aqueles que ainda assim desejam assistir ao título aqui abordado, vale colocar que é preciso ter em mente o fato de Amsterdam não estar entre os melhores trabalhos de seu diretor, mas que, se procurado de maneira despretensiosa, no fim das contas, é uma investida válida.