Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Aqueles que Ficaram

O outro lado da morte

por Sarah Lyra

É interessante que, mesmo no momento atual, em que problematizações morais e sociais nunca estiveram tão fortes, filmes como Aqueles Que Ficaram consigam trabalhar de maneira sensível relações que beiram o perturbador. Inicialmente, porque se dispõe a mostrar horrores da guerra que vão além dos confrontos bélicos, focando mais nos personagens solitários e traumatizados pelas perdas consequentes do conflito. Mais adiante, porque se aprofunda na amizade improvável entre um médico de meia idade e uma jovem no início da puberdade. Embora a dupla adote um comportamento padrão — uma dinâmica de pai e filha — para saciar as expectativas da sociedade diante da discrepância etária, fica clara a existência de uma área cinzenta jamais verbalizada, mas que sugere um possível romance ou atração entre os dois.

“Não quero nada falso”, dispara a protagonista Klara (Abigél Szõke) ao falar de seus sentimentos, com uma maturidade e precisão que impressionam pela pouca idade da garota. Talvez por conta dessa falsa ideia de discernimento propagada pela garota, as nuances da relação entre ela e Aladár (Károly Hajduk) se tornem tão complexas. Como vítima da guerra, é perfeitamente possível que Klara tenha desenvolvido um nível de consciência sobre suas ações que transcendam sua fase da vida, a adolescência; mas isso certamente não atesta uma habilidade para se envolver intimamente com um homem de 40 e poucos anos que sobreviveu a um campo de concentração, é viúvo e pai de família. É nessa batalha interna permeada por uma série de sensações conflituosas que o longa de Barnabás Tóth ganha força.

Essa característica libidinosa não é saciada e nem ao menos mencionada. Torna-se praticamente um estudo de personagem acompanhar o esforço dos dois para tratar com normalidade a situação, ainda que caiam em contradição eventualmente e que esta demanda específica dos personagens não constitua um conflito constante, já que o amor entre eles é genuíno e independe de um rótulo. Um exemplo desse contraste é a insistência de Klara para que Aladár tenha uma namorada, ao mesmo tempo em que demonstra um ciúme incontrolável quando ele finalmente anuncia ter conhecido alguém especial. O maior sintoma desse convívio pode ser visto no momento em que ambos acreditam que o médico está prestes a ser preso, deslizam sutilmente as mãos pelos corpos um do outro e por pouco não se beijam. 

Não à toa, a dupla parece imediatamente disposta a investir nos relacionamentos amorosos com seus respectivos pares — Pepe (Barnabás Horkay) e Olgi (Mari Nagy) — após o acontecimento, constrangedor para ambos, da madrugada. Assim, o que normalmente pareceria um envolvimento apressado dos casais, aqui tem o agravante do amor impossível entre os protagonistas, além da profunda apatia que parece tomar conta de todas aquelas pessoas no cenário pós-guerra. A busca e aceitação de qualquer sentimento bom, por mínimo que seja, ganham outra dimensão em meio a tanta dor. Como Aladár diz, em certo momento: “eu não sonho com meus entes mortos, para mim eles estão em todos os lugares”, deixando claro que seu pesadelo é constante, e não apenas num estado de repouso.

Conforme sugerido pelo título, Aqueles Que Ficaram é sobre o outro lado da morte, mais especificamente sobre os que receberam a chance de viver apenas para serem eternamente atormentados pela partida precoce e atroz das pessoas que amam, como um arrebatamento sem o romantismo cristão. Ainda que faça falta um desenvolvimento mais aprofundado sobre as tensões políticas na Hungria, Toth entrega uma obra complexa em sua premissa de se apoiar, essencialmente, em duas figuras simultaneamente vulneráveis e transgressoras.

Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.