O fazer necessário
por Sarah LyraOutubro não é o documentário mais eloquente em termos de discurso político, ou o mais bem produzido cinematograficamente, mas sua energia e inquietação chamam a atenção pela ousadia, assim como o recorte temático. A uma semana do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, quando a vitória de Jair Bolsonaro já estava praticamente garantida, Maria Ribeiro e Loiro Cunha, apoiadores assumidos de Fernando Haddad, se uniram para documentar os ânimos da população e de amigos próximos durante o auge da polarização. Somado a isso, Ribeiro se coloca em frente às câmeras para traçar um paralelo entre o momento político e o fim de seu casamento. O filme, portanto, se torna uma espécie de diário.
Em um primeiro momento, é difícil não se questionar sobre as pretensões de Ribeiro ao adentrar uma manifestação pró-Bolsonaro vestida de noiva, no entanto, o que inicialmente aparentava ser um discurso vazio, aos poucos começa a ganhar contornos mais definidos. Para os cineastas, principalmente Ribeiro, que também narra o documentário — o que torna difícil não associar mais a ela do que a Cunha as ideias postas em tela —, a vida política é tão íntima quanto um relacionamento amoroso de muitos anos. Isso fica evidente nos momentos em que a narração diz que casamento e democracia exigem um engajamento romântico, e que as duas instituições são semelhantes no sentido de torcer pela virada de algo que já acabou.
Embora válido como analogia, a ausência de uma exposição maior acerca das dores do divórcio, assim como das dificuldades de lidar com uma eleição perdida, torna difícil para o espectador estabelecer o paralelo, por mais sentido que ele faça. Por isso, os momentos de maior força de Outubro estão justamente nas cenas em que as entrevistas se mesclam à vida real, como se se tratasse de um grupo de amigos com ideais em comum e que estão aprendendo a lidar com a derrota nas urnas, algo que pode ser visto na interação com o escritor e jornalista Xico Sá, por exemplo, que recebe a equipe do filme em sua casa e nos faz esquecer que ele está sendo filmado. As entrevistas mais tradicionais, embora apresentem conteúdos relevantes, destoam do restante do filme, tanto em linguagem quanto em tom — e, nesses momentos, a ausência de um roteiro é notável.
Ainda assim, é interessante acompanhar os bastidores da repercussão de alguns momentos icônicos das eleições, como o discurso de Mano Brown em um comício no Rio de Janeiro, a condução de Manuela D’Ávila de um evento a outro e o Vira Voto, sem que os acontecimentos em si se tornem o foco, mas sim o senso de união desses grupos. O aspecto metalinguístico também é um diferencial, principalmente pela habilidade de Ribeiro em sustentar um diálogo com o espectador no off — isso pode ser visto nos momentos em que ela diz, durante o processo de montagem, estar emocionada pela música de Ravel Andrade, e quando admite ter filmado uma cena um mês depois da vitória de Bolsonaro nas urnas, o que rompe com a premissa inicial de inserir apenas imagens da semana da eleição. Mesmo com inconsistências, Outubro, enfim, se traduz como a necessidade do fazer quando não se faz ideia do que fazer, principalmente naquele tão avassalador mês de outubro.
Filme visto durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.