Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Vozes e Vultos

O horror do desconhecido

por Bruno Botelho

Emanuel Swedenborg (1688-1772) foi um filósofo e espiritualista sueco que era visto como iluminado e louco por causa de sua visão sobre o mundo espiritual. Segundo ele, os mortos não precisam causar medo, isso o que faz é a vida. Vozes e Vultos, de 2021, é um suspense e terror psicológico da Netflix que aproveita desse conceito para apresentar uma história de fantasmas diferente do habitual no gênero.

"Isso eu posso declarar... O que está no Paraíso é mais real do que o que está no mundo"

Baseado no romance All Things Cease to Appear de Elizabeth Brundage, Vozes e Vultos acompanha uma artista de Manhattan (Amanda Seyfried) que se muda com sua família para o Vale do Hudson. Conforme ela começa sua nova vida num vilarejo histórico, ela passa a suspeitar que seu casamento com George Clare (James Norton) e sua casa está cercado por algo obscuro.

Vozes e Vultos é um suspense psicológico que discute sobre o patriarcado 

O terror é um dos gêneros mais fascinantes do cinema pela capacidade que ele tem de discutir sobre questões revelantes para a sociedade com símbolos e metáforas aterrorizantes. Por isso, os cineastas Shari Springer Berman e Robert Pulcini, que também foram responsáveis pelo roteiro da adaptação, fazem um trabalho interessante em Vozes e Vultos para subverter os conceitos clichês de casas assombradas e aprofundar sua narrativa em um suspense psicológico sobre o patriarcado e o papel relegado das mulheres sociedade.

Catherine Claire, interpretada por Amanda Seyfried, é uma artista que sofre de bulimia e abandonou sua carreira promissora para se dedicar ao casamento e cuidar de sua filha com George Claire, interpretado por James Norton. Por causa de uma nova oportunidade para ele como professor de história da arte, eles se mudam para um pequeno vilarejo. Alguns acontecimentos estranhos passam a acontecer na nova residência dos Claire, mas aos pouco fica evidente que o grande terror do filme é o casamento deles.

O grande mérito da produção é desenvolver aos poucos os problemas da relação entre Catherine e George, que está completamente destruída. Assim, por causa das relações que vão sendo construídas na primeira metade, o marido começa a mostrar progressivamente suas atitudes machistas e tóxicas. Ele é popular e querido no emprego novo – onde todas suas alunas são apaixonadas por ele – e acaba se aproximando da moradora local Willis (Natalia Dyer), enquanto ela está socialmente isolada sem conhecer ninguém na cidade e não ter um serviço.

Por trás da aparência de bom moço, Vozes e Vultos mostra que George Claire é um oportunista e, principalmente, como ele oprime sua mulher, sem valorizar ou deixar que ela demonstre suas características como uma mulher forte. Isso fica nítido quando Catherine desenvolve uma relação com Justine Sokolov (Rhea Seehorn), uma mulher empoderada e mais consciente de seu papel. Assim, George tenta pintar problemas na personalidade de Justine, para tentar fazer com que sua mulher se afaste e não consiga ter um crescimento pessoal como ele – ou até mesmo se tornar mais relevante.

Subversão das histórias de fantasmas, mas problemas na execução final

Todos esses elementos de discussões sociais são bem implementados em uma narrativa lenta e densa que se aprofunda psicológicamente na personagem da Amanda Seyfreid, que foi recentemente indicada ao Oscar pelo filme Mank, e consegue entregar uma atuação com nuances, entre a mulher quebrada e a mulher forte. Histórias de espíritos e fantasmas são muito populares e cada vez menos eficazes nos filmes de terror, por isso, Vozes e Vultos subverte os espíritos para um elemento agregador na trama, se tornando um aliado para que Catherine consiga superar sua dor e o medo do desconhecido, que muitas vezes é mais real do que imaginamos e se transforma em quem mais confiamos.

O primeiro ato consegue desenvolver muito bem isso, com uma estética fria e melancólica, mesmo que a narrativa seja arrastada em alguns pontos. Porém, grande problema de Vozes e Vultos vem no desenrolar da história e reviravoltas na trama que tentam levam o filme progressivamente para um terror mais explícito e convencional, o oposto do que estava sendo feito inicialmente. James Norton vinha fazendo um bom papel ao interpretar George como um personagem elegante e charmoso, mas que escondia um grande jogo manipulativo. O problema aparece quando os diretores mudam a chavinha dele para um personagem cada vez mais alucinado e psicótico bruscamente, em uma tentativa de emular Jack Nicholson em O Iluminado.

Assim, o filme perde no ato final suas nuances psicológicas bem desenvolvidas e parte para uma trama mais direta repleta de acontecimentos voltados mais para o público de terror tradicional. O final também apresenta um problema grande quando não satisfaz as problemáticas apresentadas durante toda a trama sobre o patriarcado. Fica evidente a mensagem sobre a união das mulheres, mas a sensação de justiça não fica completamente estabelecida na última cena. 

Vozes e Vultos é um suspense psicológico que desenvolve bem uma trama relevante sobre masculinidade tóxica e empoderamento feminino, em uma espécie de romance gótico que subverte a visão sobre histórias de fantasmas e casas mal-assombradas. Infelizmente, o filme perde um pouco a mão quando tenta abraçar mais o terror convencional em sua parte final, mas ainda assim, é um suspense que merece ser visto e discutido.