Conteúdo x Forma
por Sarah LyraMais do que um documentário sobre relacionamentos afetivos, O Seu Amor de Volta, de Bertrand Lira, aborda a inclinação do ser humano a ritos e crenças que prometem dar ou devolver algo ou alguém sobre os quais não exercemos influência. Com isso em mente, o cineasta conduz uma série de entrevistas sobre decepções amorosas e solidão, e apresenta ao espectador a essência e as particularidades de sessões de tarot, búzios, banhos de ervas e oferendas para “conquistar corações”, prever futuros e dar conselhos sobre questões afetivas. O diversificado painel é composto por um maquiador, uma professora de português e duas atrizes, entre elas Marcélia Cartaxo.
O que chama a atenção na obra de Bertrand é o acesso íntimo, quase irrestrito, aos entrevistados. O filme emana um tom familiar, como se não houvesse exatamente uma figura no comando, e o processo criativo fosse descoberto à medida que as imagens são gravadas. Embora válido como fazer artístico, essa característica intimista é também responsável por criar uma certa desordem no longa. Mais do que em técnicas de estrutura da narrativa, Bertrand sustenta sua obra a partir de uma conexão emocional entre público e personagens, deixando evidente a ausência de um refinamento na forma.
Essa falta de poda não é necessariamente um demérito. Alguns momentos de humor, por exemplo, acabam ganhando espaço na projeção por conta dessa característica de Bertrand de libertar o discurso de seus entrevistados e atores, permitindo que eles sejam mais espontâneos em suas falas. Até mesmo nas cenas ficcionais, que entrecortam as entrevistas para mostrar as consultas, há um resquício de improviso. É divertido ver as tentativas de uma cartomante para convencer um de seus clientes de que o parceiro que ele tem em mente não é o mais adequado para uma vida afetiva saudável. “Esse amor que eu vejo nas cartas não é bom, só te trouxe sofrimento”, afirma a cartomante. “Mas eu quero esse”, responde o homem do outro lado da mesa. Os enxertos, no entanto, com o tempo se tornam repetitivos e redundantes, principalmente porque as sessões não apresentam grande variação temática entre si, mesmo com a alternância entre clientes e seus conflitos.
Trechos como esse mencionado acima se aproximam do propósito do diretor de questionar a obsessão dos humanos por amor. De maneira geral, porém, essa indagação não permeia o documentário de forma tão incisiva quanto é sugerido. Talvez o segmento que melhor ilustre essa inquietação de Bertrand seja o protagonizado por Danny Barbosa, atriz trans paraibana que expõe suas dificuldades e dores na busca por uma relação estável. Ela impressiona não apenas por sua eloquência e precisão, como também pela coragem de se colocar vulnerável em frente às câmeras, evitando romantizar sua jornada. Barbosa se mostra perfeitamente confortável em se abrir e abordar suas contradições, medos e fraquezas. Se há uma história que alavanca o documentário, tanto na forma quanto no tema, certamente é a dela — sua performance final da música Garota Solitária é a grande prova disso.
Embora bem intencionado tematicamente, O Seu Amor de Volta demonstra incertezas sobre sua mensagem. Em um primeiro momento, a ideia parece ser abordar superstições; em outros, falar de amor como obsessão. Alguns outros questionamentos também são lançados, embora não necessitem de uma resposta: a nossa realização afetivo-emocional depende de outra pessoa? Esse desejo de amar parte de uma necessidade biológica ou está condicionada socialmente? Juntas, essas inquietações agregam valor e oferecem camadas às histórias compartilhadas no documentário, mas a ausência de um fio condutor é notável. A falta de uma apropriação narrativa e de uma retórica mais elaborada acabam impedindo a entrega de uma obra mais coesa.
Filme visto no Festival de Cinema de Vitória, em setembro de 2019.