Privação de uma vida própria
por Sarah LyraPatrick é um filme pautado no silêncio. Com uma trama permeada por dores que jamais poderiam ser elaboradas, a ausência de diálogos na maior parte da projeção alavanca a narrativa, que tem como aliados o trabalho dos atores na composição dos personagens, principalmente Hugo Fernandes, como o personagem-título, e a direção segura de Gonçalo Waddington. Ao iniciar a trama com uma cena que mostra o protagonista em um sofisticado tratamento para remoção de pelos no corpo, o diretor vai apresentando algumas particularidades do personagem que passam a ser ressignificadas quando a trajetória do jovem começa a ser elucidada para o espectador. O que parecia ser apenas um garoto vaidoso se transforma no sintoma de uma relação extremamente problemática com seu abusador.
Waddington é inteligente ao inserir esses símbolos ao longo de todo o filme. Em um dos momentos finais da produção, quando Patrick se mostra violento com um dos personagens que até então servia como ponto de apoio, a sensação é de choque, ainda que se tratasse de uma conduta esperada, principalmente por conta do que é mostrado no início da trama sobre sua relação com mulheres. Dessa forma, é como se Patrick recebesse uma chance de recomeço, mas no fundo soubesse que seus transtornos emocionais e psicológicos são profundos a ponto de não terem mais volta. Isso fica claro no momento em que um personagem pergunta ao protagonista seu nome, e ele responde “Patrick”, não Mário.
Essa ambiguidade presente nas relações entre personagens é reforçada pelo design de produção. Mesmo morando em um local aberto, extenso e cercado por natureza, Patrick se sente aprisionado. Note como as linhas parecem persegui-lo constantemente (inclusive nas roupas) nos diversos cenários que ocupa, e como as grades da prisão em Paris são semelhantes às da cozinha da casa de sua mãe em Portugal, como se a mudança de um local para o outro não fosse tão significativa, já que seu estado de espírito permanece o mesmo: o de um homem preso, que teve seu amadurecimento como indivíduo, sua relações pessoais e suas vontades próprias completamente roubadas ainda na infância.
A maior prova do estrago causado em Patrick pode ser observada na relação com seu abusador, Mark, a quem o garoto praticamente implora um retorno. É comovente perceber como, na visão do protagonista, sua vida era mais satisfatória quando era o escravo sexual de um pedófilo. Igualmente perturbador é notar o sentimento de culpa que Patrick carrega por não ser mais um menino, e por isso sente a necessidade de se depilar constantemente. “Você não me acha mais bonito? Eu me depilei, não tenho pelos”, diz ele a Mark, esperando uma aprovação.
O sólido e bem comandado desenvolvimento da narrativa nos conduz a um ato final ainda mais devastador, embora essa ruptura se torne apressada em um filme que, até então, se mostrava paciente ao permitir o tempo necessário para os desdobramentos. O tão aguardado reencontro com Mark, por exemplo, não tem o peso sugerido anteriormente, não só pelo que acontece em seguida, mas porque não trabalha a ambiguidade de Patrick no momento mais decisivo da trama. Embora faça sentido que ele decida se vingar ao perceber como as ações de Mark destruíram toda uma família, principalmente sua mãe — que perde a capacidade de reconhecer o próprio filho —, o desfecho merecia mais atenção pela carga emotiva que demanda do protagonista. A lealdade ao seu abusador era intensa e problemática demais para ser quebrada tão rapidamente. Ainda assim, Patrick se encerra como um valioso (e silencioso) estudo de personagem sobre um homem que não tem muito a dizer, mas carrega dentro de si o peso de roubar e ter sido roubado tão intensamente.
Filme visto na 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.