O pretérito imperfeito de uma história real
por Vitória PratiniDe onde viemos? Para onde vamos? O passado fica no passado? Quando aprendemos na escola os vários tempos verbais que nossa língua portuguesa oferece, percebemos que existem três "pretéritos" — sem contar o "futuro do pretérito" — mas somente um "presente" e um "futuro" simples. Aulas de português à parte, isso nos lembra que estamos sempre focados no que passou. A Escavação, novo filme da Netflix com Ralph Fiennes e Carey Mulligan, retrata muito bem essa questão como pano de fundo. Tanto que a poesia visual do longa chega por vezes a sobrepor a história principal, transformando o enredo em algo abstrato e fluido, que vem e vai, tal como o tempo.
Adaptada do livro de John Preston — cuja tia Margaret Piggott esteve envolvida no evento — e inspirada em uma história real, a trama de A Escavação segue o arqueólogo Basil Brown (Ralph Fiennes), que é contratado por Edith Pretty (Carey Mulligan), uma viúva, para escavar formações misteriosas em suas terras, às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial. No local, encontra o que se considera até hoje a maior (e mais lucrativa) descoberta arqueológica do Reino Unido no século XX: a escavação de Sutton Hoo, que continha uma grande quantia de ouro em uma câmara mortuária de um navio enterrado, pertencente a um guerreiro da Idade Média.
Filme da Netflix tem grandes cenas contemplativas
A premissa do filme da Netflix é relativamente simples. No entanto, a direção de Simon Stone (The Turning, A Filha) e o roteiro de Moira Buffini (Jane Eyre, Harlots) deixam muitos elementos nas entrelinhas. O longa-metragem possui uma fotografia belíssima e grandes sequências contemplativas à distância, sugerindo olhares e intenções que não chegam a se concretizar em tela. Enquanto algumas cenas acabam precocemente, deixando algo no ar, outras trazem narrações sobrepostas em imagens dos personagens, como se fossem conversas externas, secretas, que causam estranhamento. Trata-se do segundo filme que Stone comanda por inteiro e, mesmo "novato", o cineasta agrega sua vasta experiência no teatro e consegue imprimir à produção um tom íntimo e absorto, porém, igualmente passageiro.
Há de se imaginar que, em um filme sobre uma descoberta arqueológica, o foco estaria na escavação em si — com doses de cenas de ação tal como os populares Indiana Jones e A Múmia. Porém, o diretor guia o olhar do espectador para a emoção dos personagens, com tomadas que contrastam ora com um close, ora distantes demais, como se fôssemos observadores curiosos. Além disso, raramente peças que foram encontradas em Sutton Hoo são mostradas. Embora esta escolha artística torne a produção bastante poética, chega a atrapalhar o entendimento da trama e descolar o público do longa. A intenção acaba gerando frieza em relação aos eventos do roteiro.
Ralph Fiennes e Carey Mulligan entregam atuação no olhar
A primeira metade de A Escavação é focada em Basil Brown, Edith Pretty e o filho dela, Robert (Archie Barnes, bastante talentoso). Os funcionários da família Pretty também são mencionados e ocasionalmente aparecem no canto da cena, mas jamais estão em foco. O filme esbanja da dinâmica dos três personagens, como a relação quase paternal entre Brown e Robert, a disparidade entre o jeito humilde de Basil e a fartura de Edith. Tais sequências são coroadas pelas excelentes atuações de Ralph Fiennes (Harry Potter, O Jardineiro Fiel) e Carey Mulligan (As Sufragistas), envelhecida para o papel (originalmente a personagem seria interpretada por Nicole Kidman). Quando o roteiro deixa questões não ditas entre eles — a doença de Edith ou em que pé está o casamento de Brown, por exemplo — os artistas conseguem transmitir tais sentimentos com maestria somente no olhar.
Lily James tem arco juvenil e melodramático demais para o filme
A partir da segunda metade do filme, a história de Basil Brown é jogada para escanteio, com o personagem aparecendo ocasionalmente, e sua relação com Robert e Edith se torna uma memória distante. Fiennes não ganha o devido espaço, tal como o verdadeiro Basil Brown não levou o renome por Sutton Hoo na época.
Em seu lugar, entram os arqueólogos e burocratas do Museu Britânico que não confiam na experiência de Brown. Ken Stott (O Hobbit) brilha como o pomposo Charles Phillips, que tem um prazo a cumprir e, claro, quer levar crédito pela descoberta. Os acordos burocráticos entre ele e a Sra. Pretty não são explorados, nem tampouco as questões mais "sérias".
Do contrário, o longa ganha um ar juvenil e melodramático com a entrada de Lily James e Ben Chaplin — que curiosamente trabalharam juntos em Cinderela, interpretando pai e filha. Em A Escavação, eles são casados. A relação entre Margaret e Stuart Piggott é enfadonha, com a moça tentando chamar a atenção de seu marido, que só tem olhos para outro homem. A partir daí, ela começa a desejar se relacionar com o primo de Edith, Rory (Johnny Flynn), certamente uma estratégia para atrair um público mais jovem ao filme. Afinal, nem de longe o longa é protagonizado por Lily James, apesar de ter sido marketeado assim.
Outro destaque positivo da produção é a ambientação do interior inglês, às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial. A Escavação consegue entregar um sentimento de tensão e urgência a todo momento, que chega a incomodar. A iminência do que está por vir é transmitida não só com os aviões indo para a batalha e a barricada para proteger as estátuas em Londres, mas também a doença de Edith e Rory partindo para o fronte.
Não importa se o pretérito é perfeito, imperfeito ou mais que perfeito, o filme da Netflix mostra que somos pequenos e jovens diante da história do mundo, e o passado não é um fantasma, deve ser "desenterrado", desmistificado e honrado. A Escavação mexe com o imaginário popular apostando nos opostos: a descoberta do século VI (um sonho de Edith desde o descobrimento da tumba de Tutancâmon) e o olhar inocente para as estrelas que tanto encantam o pequeno Robert. Quem nunca quis ser um astronauta ou arqueólogo na infância?