Críticas AdoroCinema
1,0
Muito ruim
Se Arrependimento Matasse

O sofrimento feminino

por Bruno Carmelo

O início avisa ao espectador de que somos condenados a repetir nossos erros, de que precisamos (nos) destruir para reconstruir. O conceito nietzschiano de “eterno retorno” é lançado não apenas dentro de uma sala de aula, mas também pela narração. Parte-se de um complexo pressuposto filosófico enquanto, pelas ruas da cidade, quatro mulheres trombam-se por acaso pelas calçadas, todas visivelmente perturbadas por algum conflito pessoal. O quarteto constitui, portanto, a ilustração da tese inicial. É louvável que a diretora Lília Moema Santana possua tamanha ambição discursiva, mas os problemas se encontram no uso do melodrama para ilustrar um conceito menos emotivo do que racional. O filme aposta que a melhor maneira de discutir existencialismo seria através das lágrimas e do amor romântico.

Por esta razão, os arrependimentos das quatro mulheres estão relacionados a homens, no caso, o marido, o amante, o pai, o namorado da juventude. Este é um dos raros filmes estrelados quase exclusivamente por mulheres que talvez reprovasse no teste Bechdel – as protagonistas se limitam a debater sobre a busca ou rejeição dos homens ao redor. Enquanto isso, são descritas por uma ou duas características essenciais: Maria Eduarda (Débora Ingrid) é uma jovem revoltada e dependente de drogas; Isabel Cristina (Germana Guilherme) é a mulher inocente de idade madura, que se veste de rosa e sonha em encontrar um príncipe encantado; Glória (Lana Soraya) trabalha como professora de filosofia e esconde, por trás da arrogância acadêmica, um trauma pessoal; e Adelaide (Ângela Escudeiro) representa a esposa traída de tendências suicidas para chamar atenção de seu grande amor. A construção recai facilmente na caricatura: a personagem que abortou no passado sofre de uma doença fatal no ventre, a mulher inocente adota vozes e gestos de uma adolescente.

Mais do que abordar um conteúdo moral, Se Arrependimento Matasse recai no moralismo. As personagens são julgadas, e de certo modo ridicularizadas exagero de uma construção que, a princípio, se leva a sério demais, até permitir a vazão cômica quando as quatro se reúnem na sala de espera de um hospital. O sofrimento que afeta as protagonistas não permite que se recuperem ou que encontrem na história alheia uma reflexão sobre a condição feminina em geral. Pelo contrário, o quarteto fica preso às histórias individuais, repetindo clichês novelescos de teor anacrônico (a noiva abandonada no altar, a esposa chorando diante da carta de ruptura). É difícil acreditar na inserção destas figuras numa sociedade contemporânea, enfrentando problemas cotidianos para além dos sofrimentos psíquicos individuais. A série de reviravoltas estapafúrdias rumo à conclusão tampouco ajuda a conferir verossimilhança ao filme que efetuar um retrato naturalista por meio da linguagem fabular.

O resultado também decepciona por sua construção estética. Passado majoritariamente em interiores (o hospital, os quartos), sofre com uma direção de fotografia de poucas texturas e volumes, o som oscilante e marcado pelo eco do hospital, a trilha sonora lacrimosa (pianos e violinos, é claro), a decupagem limitada aos planos e contraplanos, aos rostos e ao acompanhamento dos diálogos. As atrizes possuem desempenho desigual: Débora Ingrid se sobressai ao imprimir certa fragilidade na personagem bruta, porém Ângela Escudeiro e Germana Guilherme têm dificuldade em trabalhar com os diálogos escritos demais, especialmente nos momentos de desespero (as crises de choro dentro de casa para a primeira, o trauma na igreja para a segunda). Multiplicando as subtramas, cenários e idas e vindas no tempo, o projeto parece soterrado por suas ambições, limitando as personagens a casos clínicos exemplares ao invés de figuras psicologicamente complexas.

Neste momento, caberia a este próprio texto uma indagação sobre seu lugar de fala. O julgamento a respeito da complexidade feminina pode ser questionado, afinal, trata-se de um homem tecendo comentários a respeito de um filme feito por mulheres (a diretora Lília Moema Santana, a psicóloga Caroline Secundino Treigher) e sobre mulheres. No entanto, menos do que questionar a possível exatidão destes sentimentos, aponta-se a construção destas personagens enquanto representação cinematográfica do mundo atual, enquanto ferramentas acessórias para revelações de cunho emotivo rumo à conclusão. Se Arrependimento Matasse sofre com problemas de tom (cômico/dramático, paródico/trágico), de duração e de construção imagética. Ele se engessa nos diálogos (“Você não tem depressão, é a depressão que tem você”), na intimidade forçada entre as protagonistas, na noção de um sofrimento eterno – algo muito diferente do “eterno retorno” lançado no início. Infelizmente, tantos percalços limitam o potencial de uma obra que partia da importante ambição de discutir a emancipação feminina através da intimidade.

Filme visto no 29º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, em setembro de 2019.