Críticas AdoroCinema
3,0
Legal
Vidas Descartáveis

Sobre crimes e o mínimo de dignidade

por Barbara Demerov

Engana-se quem pensa que a escravidão foi extinta do Brasil. A realidade que ainda assola as vidas de milhares de pessoas de diferentes gerações e localidades do país permanece tão brutal quanto silenciosa, à medida que o próprio governo e empresas varejistas, assim como fazendeiros, são responsáveis por executar ou omitir esta prática que tira algo que deveria ser inerente a todo ser humano: a dignidade. Tal palavra é repetida por diversas vezes neste documentário dirigido por Alberto Graça e Alexandre Valenti, cujo intuito é o de ampliar nossa visão quanto à escravidão e mostrar seus desdobramentos de uma forma mais expositiva do que participativa.

Dos trabalhadores submetidos ao trabalho escravo em grandes fazendas até chegar em metrópoles onde famílias de estrangeiros vivem presas em casas no subúrbio para costurar roupas, Vidas Descartáveis tinha em mãos a difícil missão de não se perder diante de um vasto material de entrevistas e, de fato, consegue remanejá-las a ponto de toda sua duração manter-se instigante. Aproveitando não só o ponto de vista das vítimas deste ato perverso e inserindo, na medida do possível, contrapontos com as defesas dos advogados do Estado e de outras empresas envolvidas, o filme sabe que sua força está contida em algo simples: nas palavras.

Os depoimentos das pessoas que foram submetidas ao trabalho escravo são intensas e duras, ao mesmo tempo que exprimem uma espécie de ingenuidade que comove sem muita dificuldade. Por deixarem os personagens falarem abertamente sobre suas experiências e traumas, os diretores criam uma espécie de vínculo entre eles e centram-se nisso para fazer com que tudo acabe se encaixando, por mais que a transição entre os casos da zona rural com a zona urbana seja um tanto quanto brusca e muito próxima do desfecho. Contudo, tal escolha só amplia ainda mais a extensão da discussão imposta, provando que o problema é universal, envolvendo não só o Brasil como outros países também.

Entre relatos de violência física e tortura psicológica - como na cena em que um personagem diz que calçava um número muito menor e, com isso, teve uma doença nos pés, até chegar na escravidão infantil -, Vidas Descartáveis tem como principal ponto favorável o fato de conseguir aproveitar seu conteúdo sem inserir drama em demasia, sortindo bem os momentos informativos com os de absorção das monstruosidades ali mostradas e ditas. No entanto, o uso quase que incessante da trilha-sonora, assim como a inserção de inúmeras cenas filmadas com drones, expõem certa tradicionalidade na montagem e técnica que enfraquecem o poder da mensagem, mas não chegam a debilitá-la totalmente.

O viés jornalístico, informativo, dá muito mais as caras do que uma orientação mais apurada na investigação, o que limita o documentário a garantir apenas uma construção convencional, sem maior inventividade na estética ou no roteiro. Mas mesmo que possua traços dentro do padrão de obras cuja missão é a de informar, Vidas Descartáveis entrega o que ambiciona desde o princípio: aproveitar o cinema enquanto canal de denúncia.

Filme visto no 23º Cine PE, em agosto de 2019.