Críticas AdoroCinema
1,5
Ruim
Ninja Xadrez

Uma comédia indecente

por Barbara Demerov

A forma como a animação Ninja Xadrez se inicia é um tanto assustadora, pois o tema da escravidão infantil é exposto em uma sequência crua, sem contenção: dentro de uma empresa de bonecos na Tailândia, uma criança é espancada até a morte pelo chefe dinamarquês após cometer um erro na costura de um boneco ninja. Chega a ser doloroso assistir a algo assim em uma animação infantil, mas a cena apresenta a criação do boneco ninja que se destaca não só no título como no restante do longa.

Porém, nada é aproveitado a partir desta passagem explícita com exceção da reencarnação de um poderoso ninja que se sacrificou para salvar crianças há muitas gerações. A partir do momento em que um raio atinge o boneco costurado erroneamente com uma camisa do dinamarquês, Ninja Xadrez se transforma em algo tão simples quanto inesperado: em uma história sobre amizade. Com isso, a cena da morte da criança tailandesa não faz mais nenhum sentido, destoando-se do todo quando, na verdade, deveria ser o foco principal.

A narrativa se transfere rapidamente da miséria da Tailândia ao subúrbio dinamarquês, especificamente à vida de Alex e sua família. A mudança no tom (seja na paleta de cores como nos diálogos) é incômoda e só serve para nos apresentar a diversos clichês do gênero: um protagonista mirim que sofre de bullying na escola, tem uma paixão platônica e que ainda possui em sua casa uma dinâmica diferente, com padrastro alheio à sua presença e um meio-irmão ríspido. Toda essa ambientação serve de palco para piadas de mal gosto e situações bizarras, além da adição da própria técnica de animação tornar o visual um tanto bagunçada e espalhafatosa em diversos momentos.

O que é mais desagradável em Ninja Xadrez não recai no fato da animação optar por um desenvolvimento preguiçoso do próprio enredo ou na amizade inusitada entre garoto e boneco; o maior deslize está em justamente misturar um discurso político extremamente atual e relevante dentro de uma trama infantil que não respeita suas próprias personagens. A trama da escravidão infantil se anula diante da falta de interesse de Alex ao escutar o plano de vingança do Ninja: o menino responde que "isso acontece o tempo todo", referindo-se ao trabalho escravo como se tivesse plena noção do assunto. O fato é que a animação não deixa de nos surpreender em nenhum momento, com o espanto inicial tomando a forma de indignação.

Apesar de todos estes pontos negativos, a amizade entre Alex e o boneco traz certo balanço à trama, com o espírito do ninja tornando-se uma espécie de mentor para que o protagonista saiba se portar com mais segurança e, também, a respeitar promessas. Infelizmente, as boas intenções param por aí, porque o roteiro insiste em apertar na mesma tecla sempre que possível: a solução para corrigir o sofrimento realmente está na ação com violência?

Em tom de ironia e sarcasmo o tempo todo, Ninja Xadrez ainda coloca Alex em situações que beiram o obsceno para uma animação infantil: o menino chega a parar em uma clínica psiquiátrica e até a comprar cocaína de um traficante com a maior tranquilidade. No fim de tudo, o senso de vingança e justiça do Ninja fica na sombra de uma narrativa indigna daquilo que se propôs discutir em sua abertura agressiva - que, pensando bem, também pode ser considerada forte demais para as crianças.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.