Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Panoptic

Memórias do subsolo

por Bruno Carmelo

A diretora Rana Eid nasceu nos anos 1970, durante a guerra civil no Líbano. Demorou a compreender a situação política, o trabalho do pai militar, e porque passava tanto tempo de sua jovem vida em bunkers e outros tipos de proteções subterrâneas, fugindo das bombas. Em idade adulta, dedica uma carta ao pai falecido, tentando fazer as pazes ao mesmo tempo com a memória deste homem e com o imaginário de um país em transformação. Atualmente, quando observa Beirute, a diretora encontra gigantescas avenidas, redes de fast food por todos os lados, arranha-céus e carros cortando o horizonte. O local em que nasceu não se conecta mais com a realidade que experimenta hoje, razão pela qual o filme efetua a tentativa simbólica de conectar duas imagens opostas do Líbano.

Além da paisagem urbana, a cineasta se depara com um gigantesco prédio abandonado onde os militares torturavam civis. Apesar de tentativas de demoli-lo, o prédio sustenta sua carcaça vazia pela cidade, com as centenas de janelas vazias transformadas em olhos que ainda vigiam os habitantes. Desta imagem fantasmática, Eid retira a metáfora de Argos Panoptes, o gigante de cem olhos da mitologia grega, e também do posterior Panóptico de Michel Foucault, a representação de um poder invisível que vigia os seus habitantes o tempo inteiro, mesmo sem saber que estão sendo observados. Cria-se a ideia de um governo que se autorreproduz, e não pode ser derrubado porque não possui rosto nem nome. De certo modo, as referências literárias e mitológicas também se estendem ao “Castelo” de Franz Kafka e às “Memórias do Subsolo” de Fiódor Dostoiévski.

De fato, o filme se constrói quase inteiramente sobre a oposição entre o solo e o subterrâneo, a superfície e os espaços escondidos sob a terra. Na parte visível existe a aparência de modernidade, a festa eletrônica onde os jovens dançam despreocupadamente. Sob seus pés operam centros de detenção de imigrantes ilegais, esconderijos e muitos corpos enterrados de vítimas do regime. A diretora critica particularmente a lei da anistia, que simplesmente relegou ao aspecto subterrâneo da memória os crimes de então, sem responsabilizar os torturadores do governo militar. Pelas praças da cidade, capta-se discursos patrióticos inequívocos: “Ninguém pode julgar o exército, em qualquer circunstância!”, gritam militares, para o delírio da plateia embasbacada.

Apesar desta construção eficaz do discurso político, Panoptic nem sempre se resolve muito bem no plano estético. O principal elemento prejudicial é a quantidade de efeitos aplicados em pós-produção, como as câmeras lentíssimas e as luzes piscantes, que acabam por ressaltar a captação digital de baixa qualidade. Além disso, algumas metáforas visuais só funcionariam a contento com melhores recursos de produção: os reflexos de lâmpadas fluorescentes em poças d’água e a poeira voando sob os feixes de luz constituem ideias interessantes, cujo efeito se atenua pela pixelização da imagem e pela direção de fotografia deficiente. Em outras palavras, a diretora nem sempre consegue adequar sua estética às limitações da produção, escancarando o agenciamento um tanto pobre, e até repetitivo, dos enquadramentos.

Além disso, o próprio recurso da carta ao pai soa retórico, como maneira óbvia de informar o público dos sentimentos da diretora e dos males do país, visto que nenhum conflito familiar é realmente abordado pela narração em off. Não parece existir qualquer ferida pessoal a resolver de fato: o pai se torna mera desculpa para abordar a guerra. A busca pela poesia a qualquer preço revela a artificialidade da premissa – algo um tanto semelhante aos documentários brasileiros de Petra Costa, por exemplo. Mesmo assim, enquanto meditação sobre a história do país, o documentário foge aos recursos mais óbvios do cinema informativo ou de denúncia, buscando uma construção puramente visual para debater o papel da memória.

O filme se conclui com uma reflexão didática: “Quando a guerra terminou, emergimos dos abrigos, mas não do subterrâneo”. Talvez a conclusão fosse ainda mais potente se o espectador pudesse elaborá-la por si próprio, visto que a extensa argumentação desenvolvida até o final tornava esta síntese bastante evidente. No entanto, o desfecho da dicotomia superfície/subsolo, ou verdade/segredo, funciona como busca honesta por um diálogo sobre as fissuras nacionais cujas implicações vão muito além do período narrado, e muito além da história do Líbano.

Filme visto na 14ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, em agosto de 2019.