Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Maricarmen

Ensaio sobre a cegueira

por Bruno Carmelo

Maricarmen Graue é cega, embora esta questão seja verbalizada bem tarde dentro da narrativa. Ela também é violoncelista, escultora, escritora e professora. No entanto nem ela, nem as pessoas próximas precisam falar a respeito: a câmera do diretor Sergio Morkin acompanha o dia a dia desta mexicana de 52 anos, seguindo-a pelas calçadas, pelas escadas rolantes dos metrôs, pelos cruzamentos de avenidas. Descobrimos tudo o que ela é capaz de fazer através da rotina cotidiana - em outras palavras, a protagonista não é descrita como um caso excepcional, um modelo de perseverança, e sim como uma mulher comum.

O olhar de igual para igual a Maricarmen constitui o principal mérito do documentário. Seria fácil transformá-la em vítima ou heroína, ter piedade dela ou ressaltar seu trabalho como sendo melhor do que os de pessoas com visão perfeita. No entanto, o cineasta descreve apenas as atividades que ela pratica, sem julgamento de valor: se ela é boa ou má violoncelista, uma escultora interessante ou não, isso caberá ao espectador decidir. O mais interessante, neste projeto, é sugerir a experiência da cegueira, as impressões e sensações de uma mulher desprovida de visão desde pequena.

Por sorte, Morkin conta uma uma personagem fascinante. Maricarmen possui um senso crítico afiado, aliado a uma verve poética que resulta em belíssimas narrações em off. Ela descreve seu olho de vidro como “fantasia de não-cega”, descreve a sensação de não ter pessoas ao redor como uma impressão de morte. Além disso, fala abertamente sobre a baixa autoestima, pela dificuldade de manter relacionamentos amorosos, e da relação de amor e ódio que nutre com a mãe idosa, uma mulher distante e autoritária. Aos alunos de uma oficina, diz que é preciso sempre “continuar improvisando”, algo que soa menos como conselho pedagógico do que lema de vida. Sem ter tido qualquer tipo de ajuda para lidar com a perda da visão, ela descobriu por conta própria um meio de ganhar a vida, de viver sozinha, de ser independente.

Enquanto essas falas ocupam a banda sonora, Morkin oferece representações igualmente poéticas em imagens. No início, o cineasta recorre demasiadamente ao desfoque - alternativa óbvia para ilustrar a cegueira -, mas aos poucos encontra soluções mais interessantes como a diferença entre luz e sombra na passagem de um túnel ou a imagem de Maricarmen correndo numa esteira ergométrica, sozinha, diante da cidade escura ao redor. A sensação de isolamento é muito bem mostrada em tantas idas e vindas diárias, pelas, ruas e metrôs, nos quais a câmera se aproxima sem intervir. A direção quer estar perto desta mulher, porém deixando total liberdade para que se expresse como quiser. Existe evidente respeito por sua figura e sua autonomia - é belíssima a cena em que ela retira o olho de vidro, no final, e se expõe sem disfarces, sem precisar corresponder às normas estéticas da sociedade.

Maricarmen resulta num ótimo estudo da psicologia de uma personagem cega. Enquanto muitos diretores estariam mais preocupados com o espetáculo da alteridade - fotos da criança sem visão, episódios tristes de desvantagens devido à deficiência - Morkin prefere compreender de que maneira esta mulher percebe o amor, o sexo, o trabalho, a família; o que a motiva a executar tantas tarefas todos os dias, e que perspectivas possui para o futuro. Ao final, os terremotos na cidade funcionam como catarse e metáfora ideal para a desestabilização da protagonista em relação ao resto da sociedade. Ao invés de um otimismo forçado, o documentário termina de modo melancólico - menos esperançoso, certo, mas muito mais realista e humano. Talvez seja este o melhor modo de representar a diferença: por suas percepções e sentimentos, ao invés de seus corpos e inadequações.

Filme visto na 24ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, em abril de 2019.