Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Meu Amigo Fela

Retrato em terceira pessoa

por Bruno Carmelo

Desde as primeiras imagens, é difícil não embarcar na energia e no furor de Meu Amigo Fela. O diretor Joel Zito Araújo elabora uma série de lyric videos das canções do artista nigeriano Fela Kuti, ornando a tela com ilustrações e cores fortes, em ritmo veloz. Em seguida, as ruas agitadas de Lagos aparecem antes mesmo da primeira imagem do rosto do protagonista. O biógrafo e amigo pessoal Carlos Moore conversa com o filho de Fela, com os conhecidos, ao passo que outras canções contestadoras e vibrantes (o “afrobeat político-cultural”) tomam as telas. Enquanto forma de imersão no espírito de uma época e nas sensações da música, este documentário efetua um trabalho exemplar.

O filme também se sai muito bem ao associar Fela à trajetória do movimento negro no mundo inteiro. A montagem chega a esquecer o biografado durante longos minutos para falar de Malcolm X, Martin Luther King, Maya Angelou, Huey Newton e tantas outras lideranças pelos direitos civis. Este recurso pode parecer um desvio, mas apenas ressalta a intenção de colocar Fela Kuti no mesmo patamar destas outras pessoas, sugerindo que suas palavras e sua música foram igualmente relevantes no ativismo político, especialmente africano. Em paralelo com o projeto gráfico das canções, as fotografias e letreiros são utilizados no filme de modo igualmente pop e colorido por mais que sua função dentro da narrativa permaneça convencional.

Ao mesmo tempo, Meu Amigo Fela evita as típicas entrevistas para a câmera ao propor um formato triangulado: a câmera filma Carlos Moore entrevistando pessoas importantes na vida de Fela Kuti, como o filho, os outros membros da banda, a ex-esposa, a ativista e música Sandra Izsadore. Pela proximidade entre estas pessoas, as conversas possuem o mérito da descontração, que favorece a lembrança de episódios pontuais e sensações pessoais. Izsadore, em particular, possui uma personalidade extrovertida que garante alguns dos melhores momentos do filme. Por outro lado, este recurso transparece o estímulo de tópicos de conversa pela direção, no qual Carlos relembra aos entrevistados coisas que ambos já sabem, na intenção de informar o espectador. Esta ferramenta típica das ficções confere certa artificialidade ao conjunto, mas não prejudica o cruzamento orgânico entre o ativismo e a arte na vida de Fela e dos entrevistados.

A construção do protagonista em terceira pessoa traz fortes consequências ao projeto, tanto positivas quanto negativas. Por um lado, permite conhecê-lo para além de dados e fatos, em sua vida íntima e através de múltiplos pontos de vista. Por outro lado, acaba por transformar Fela em objeto de estudo, ao invés de sujeito do filme. O artista aparece pouco em imagens, e seus discursos são menos utilizados do que as falas de outras pessoas a respeito desses mesmos discursos. Consequentemente, ele é transformado em ícone, favorecido por sua mitologia - o impacto em terceiros, o reconhecimento da população local - ao invés de sua condição de profissional da música.

“Seria importante não reduzi-lo a um ícone cultural, um herói do gueto”, afirmam Carlos e outros colegas de Fela. Mesmo assim, o documentário fica próximo da esfera hagiográfica por sequer destacar o papel dos outros membros do grupo na evolução musical do afrobeat, ou demonstrar o estudo musical de Fela: ele aparece aos nossos olhos como um talento inato, pronto, que apenas se adaptou à politização crescente. O roteiro também dedica um tempo considerável a destacar seu apetite sexual e seu convívio com vinte e sete esposas, no que soa como elogio de sua virilidade. Ressalvas à parte, Meu Amigo Fela obtém sucesso no elemento principal: inserir seu personagem dentro de um contexto político e social preciso, explicitando de que maneira e cultura e a arte servem para transformar uma realidade e formar novas gerações.

Filme visto na 24ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, em abril de 2019.