Precisamos de arte
por Bruno CarmeloDurante cerca de quinze minutos, o espectador escuta uma poesia angolana, em off, e assiste a um ritual local. Não se explica quem são aquelas mulheres, porque vestem os mesmos trajes coloridos, que impacto os cânticos e danças deveriam produzir em suas vidas. A direção observa o grupo num silêncio sepulcral, à distância, sem fazer perguntas nem tecer comentários. As Cores da Serpente se abre como um documentário etnológico clássico, do tipo que testemunha a riqueza de uma cultura distinta como forma de aprendizado em si. Seu valor estaria no próprio fato de ter apreendido as imagens, de ter demonstrado interesse nelas e eternizado uma prática ignorada pela maior parte do público.
Eis que o projeto sofre, então, uma guinada inesperada. Nada do que se segue estabelece a mínima relação com o início austero, deixando a impressão de um longo apêndice enxertado para se atingir duração de 70 minutos, necessária para que o filme seja considerado oficialmente um longa-metragem. As demais cenas são muito mais amenas, mais amistosas. Um grupo de grafiteiros e artistas urbanos em geral decide pintar um extenso mural à beira de uma estrada angolana, trocando as pichações ofensivas por criações originais. Um por um, eles relembram a importância de ter obras de arte no espaço urbano, o ineditismo da iniciativa, o modo como o painel transforma o ambiente ao redor.
Estas considerações são importantes, e merecem ser ressaltadas no documentário de Juca Badaró. O problema se encontra no fato de o projeto se limitar ao elogio da arte. O diretor não investiga a vida desses artistas, suas outras obras, sua rotina, a relação do mural com outras manifestações artística nacionais, a maneira como o povo ou a administração da cidade acolheram este trabalho. O espectador sequer conhece o nome da grande maioria dos artistas. O mural é descrito como uma exceção, mas para compreendermos a magnitude desta iniciativa, seria preciso apresentar a falta de arte nos arredores, a dificuldade material em pintar o mural, em conquistar o direito administrativo de fazê-lo.
A pintura é retratada como um acontecimento banal: após dois ou três planos de homens com rolos em mãos, o mural aparece completo. Em seguida, a montagem retorna ao início, depois, pula para partes trechos no meio do processo, e depois à obra concluída, e mais uma vez ao início de tudo. As Cores da Serpente incomoda pela falta de estrutura, a impressão de que não havia um roteiro delimitado, apenas a intenção de filmar o trabalho dos grafiteiros, para depois reunir o conteúdo da melhor maneira possível. Parece não haver um conceito por trás da maneira de filmar este espaço, visto em planos repetitivos. Para retratar uma obra criativa, utiliza-se ironicamente uma linguagem protocolar.
Vale lembrar que, em 2013, o cinema brasileiro apresentou um belo documentário sobre a inserção do grafite no espaço urbano: Cidade Cinza conseguia discutir os espaços, a cidadania, a política, a luta de classes. Já a pequena produção angolana é minimizada pelos problemas técnicos evidentes: um tratamento de som fraquíssimo, com a captação da câmera saturando a banda sonora com vento e ruídos, edição e mixagem de som amadoras, fotografia estourada em diversas cenas, além de cortes abruptos - inclusive no meio de uma frase. Os artistas, quando se expressam por si próprios, demonstram uma personalidade forte que poderia enriquecer muito o resultado. Mas o filme se contenta em abordar o mural como uma finalidade, ao invés de um meio para uma discussão mais ampla.