Rosa, azul e todas as outras cores
por Bruno CarmeloNas primeiras cenas deste drama, Ariel (Lucía Bedoya) se encontra atrás de manequins corroídos numa fábrica. Logo depois, ela é vista por trás de uma barreira de bambus. Depois, seu rosto é posicionado no canto do enquadramento, espremida pelo espaço vazio ao redor. Do início ao fim, a protagonista de Eu, Impossível é colocada literalmente à margem da imagem, em representação de sua posição de deslocamento social e individual. A garota sabe que existe algo errado consigo mesma, mas não consegue identificar o quê. Quando tem sua primeira relação sexual, sofre com intensas dores. Dias depois, continua sangrando. Isso seria natural na perda da virgindade, certo? Ariel quase não se comunica, não faz perguntas. A garota sofre em silêncio.
Por um lado, a narrativa se constrói como um suspense. Qual seria o problema da garota? Seria grave? Por outro lado, o próprio filme fornece a resposta à sua pergunta, progressivamente, em montagem paralela, quando diversos indivíduos intersexuais testemunham a uma câmera sobre sua dificuldade de autoaceitação e inserção social. Não é difícil associar as duas esferas: Ariel também seria intersexual, e as dores na vagina resultariam de intervenções cirúrgicas na infância. Como a verdade é compartilhada pelo espectador, pela mãe e pela médica da personagem, cabe apenas seguir a trajetória de descoberta da jovem introspectiva, que precisa lidar ao mesmo tempo com a doença grave da mãe e a descoberta da atração sexual por uma colega de trabalho. Embora se articule com as ferramentas do suspense, é no drama íntimo que o projeto se concretiza.
A diretora Patricia Ortega constrói imagens de uma poesia singela, talvez pouco inventiva, mas competentes dentro deste universo de sentimentos confusos. Existe evidente respeito ao abordar o corpo, tema central da narrativa, sem fetichizá-lo nem transformá-lo em tabu. Imagens como o discreto feixe de luz atravessando as pernas da personagem na banheira, ou a personagem correndo sobre um terreno baldio para fugir dos comentários maldosos de colegas trazem alguma leveza aos enquadramentos rígidos nos olhos assustados de Lucía Bedoya. A atriz tem um papel difícil em mãos, pela microscópica evolução ao longo da trama, e o cumpre com impressionante discrição, sem qualquer gesto espetacular. Os demais atores se mantêm contidos neste mundo povoado de silêncios, espaços vazios, dias nublados, objetos quebrados, cofres fechados. A estética pode se considerada literal demais, no entanto funciona para criar a melancólica paisagem interna da protagonista.
Mesmo assim, Eu, Impossível recorre a alguns clichês pouco interessantes da representação da marginalidade – seja a presença da vilã ressentida no local de trabalho ou a imagem de Ariel caminhando sozinha contra a multidão, trombando com anônimos. Os personagens coadjuvantes são pouco definidos, tendo como única característica sua relação à protagonista – a mãe de Ariel, a colega de trabalho de Ariel, a médica de Ariel, a possível namorada de Ariel. O mundo gira em torno da garota, de modo certamente acessório, porém compreensível pela perspectiva subjetiva: enxergamos sobretudo o que a garota enxerga (exceto pela questão da intersexualidade). Ortega se sai melhor na sugestão poética da crise de identidade do que na construção social do ambiente proletário, católico e ignorante quanto às possibilidades identitárias além de “homem” e “mulher”.
Rumo ao terço final, quando a questão da intersexualidade se elucida, o drama verbaliza o seu discurso numa roda terapêutica: “É difícil compreender a sociedade e se encaixar neste mundo de incompreensão”, afirma uma personagem intersexual, enquanto as demais compartilham seus testemunhos. Este trecho trata de esclarecer tudo o que vinha sido mostrado até então, como se o suporte fictício servisse de mero estudo de caso para a pedagogia posterior. Não é difícil imaginar o projeto sendo exibido em debates focados na identidade de gênero. Cinematograficamente, a decisão de traduzir em palavras a história de Ariel e dizer ao espectador o que pensar, ao invés de deixar que tome as decisões por si próprio, empobrece significativamente a obra.
No entanto, percebe-se a preocupação da cineasta em deixar seu ponto de vista claríssimo, sublinhando o repúdio às intervenções cirúrgicas em indivíduos intersexuais, que deveriam decidir por si próprios se desejam sofrer qualquer alteração em seus corpos para se adequarem a uma lógica binária. Ariel se torna uma figura exemplar, uma fábula para que se discuta, enfim, o tema marginal até mesmo dentro das representações LGBTQI+ nos cinemas. Talvez por isso o militantismo didático de Eu, Impossível se justifique: o filme assume para si a responsabilidade de dar voz a pessoas invisibilizadas, abordando com respeito e sensibilidade uma questão que costuma ser enxergada pela ótica brutal da mutilação. Por isso tamanha delicadeza com a personagem, e tamanha rigidez com o discurso político.
Filme visto no 14º Festival Latino-Americano de São Paulo, em julho de 2019.