A vida sonhada dos artistas
por Bruno CarmeloEsqueça a imagem dos atores que passam anos estudando artes dramáticas, lendo textos, praticando e ensaiando, fazendo dezenas de testes e se aperfeiçoando enquanto têm boletos para pagar e enfrentam os dilemas cotidianos de qualquer pessoa. Em A Quarta Parede, a vida se resume a festas, drogas, intrigas, discussões filosóficas sobre a arte e a audição para a única peça existente em São Paulo. Os personagens deste filme coral não existem fora da seleção para uma nova montagem de “Entre Quatro Paredes”, de Sartre, dirigida por um sujeito tirânico e vaidoso.
Por mais que deseje parecer realista através de sua estética despojada, das gírias, dos corpos nus e do aceno constante à contemporaneidade (personagens colados aos seus telefones celulares), o projeto lida com a idealização da vida dos artistas, estes sujeitos excêntricos dispostos a fazer sexo com qualquer um à sua frente, em constante busca de si próprios. Este, inclusive, constitui o rótulo de alienação e privilégio que os setores mais conservadores da sociedade sempre quiseram colar aos atores: a noção de “vagabundos” que não trabalham, apenas “corrompem famílias” com sua existência hedonista e egocêntrica.
A Quarta Parede pretende trazer um discurso político, ainda que ele seja, no mínimo, ambíguo. Por um lado, as personagens femininas defendem a liberdade dos seus corpos e de seus prazeres, enquanto o grupo de jovens atores contesta a visão patologizante da homossexualidade. “Eu me apaixono por pessoas, e não por homem ou mulher”, afirma uma delas, diante dos aplausos dos colegas. Por outro lado, embora o roteiro tome distância do caricatural diretor da peça, ele não adota uma postura crítica em relação ao protagonista, Theo (Tutty Mendes), um sujeito manipulador e cínico que provoca o sofrimento alheio como forma de alimentar seu filme caseiro.
“Eu sou um artista!” é uma das últimas frases pronunciadas por ele, espécie de gênio incompreendido da juventude ultraconectada, que se sacrifica em nome de uma verdade moral e estética. Outros toques conservadores aparecem aqui e acolá, como a delegacia de polícia decorada com recortes de jornal anti-Lula, e o fato que nenhuma outra possibilidade de criação artística é proposta além daquela abusiva, moralmente e sexualmente predatória. Os personagens que ferem e manipulam saem ilesos da trama, enquanto a policial federal se limita à inacreditável posição de ouvinte diante das declamações poéticas do protagonista. (Aliás, esta é a cena de interrogatório menos verossímil do audiovisual recente).
A Quarta Parede parece concebido para dar a seus jovens atores uma chance de brilhar e demonstrar o seu potencial – como um portfólio. Para isso, ao invés de trabalhar o desenvolvimento psicológico de cada estudante, prefere saltar a grandes atos de bravura, frases de efeito e momentos de exterioridade. Entram em cena choro, grito, nudez, beijos, socos, estupro e confissões de assassinato. No segmento batizado “Inferno”, o diretor Hudson Senna investe numa visão do mundo à la Gaspar Noé, de que o sofrimento e a exploração – dos corpos, da mente dos personagens – serve a extrair alguma forma de verdade sobre a coletividade. No entanto, não há qualquer forma de investigação estética para além dos polidos enquadramentos em scope.
Ao mesmo tempo, o drama também evita inserir estes jovens na sociedade, compreender suas famílias, a administração da escola, as demais peças, os filmes, a relação com outras instituições sociais. Entramos no privilegiado universo bolha de jovens adultos que dedicam seus dias inteiros a ser escolhidos ou não pelo diretor excêntrico, como se suas vidas dependessem disso. Enquanto a estética soa exploradora e mesmo sádica – vide o enquadramento voyeurista da cena de estupro -, os personagens são utilizados como mártires das artes cênicas, figuras que entregam seus corpos nus a quem quiser fazer o que for melhor deles.
Esta demonstração de violência não é denunciada, apenas vista como uma espécie de purgação inerente ao ofício de “se doar” em nome da arte. Ironicamente, o drama que busca ser cool e desprovido de tabus retoma a ideia religiosa da purificação através do sofrimento. No caso destes jovens Faustos, o pacto com os diabos Teo-diretor jamais produz a satisfação prometida, apenas um calvário cuja única possibilidade de escapatória é a morte. Talvez o horizonte alcançado seja menos o de Fausto e de Sartre, como se pretende, e mais o da Justine de Sade, ingênua e abusada por um poder social tão potente quanto invisível.