Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Elogio da Liberdade

Duas mulheres em movimento

por Bruno Carmelo

Para seu primeiro longa-metragem como diretora, Bianca Comparato embarca num projeto bastante ambicioso. Ela pretende não apenas narrar toda a trajetória da intelectual Rosiska Darcy de Oliveira – algo que seria, por si só, abrangente demais – mas também estabelecer um paralelo entre a evolução pessoal da protagonista e as mutações sociais do século XX, analisando as transformações políticas que vão de Simone de Beauvoir a Marielle Franco, das primeiras parlamentares europeias mulheres à eleição de Dilma Rousseff. Felizmente, a cineasta não utiliza o contexto social para reforçar o valor da biografada, preferindo o caminho contrário: o filme parte de Rosiska para o mundo.

Assim, é com certo alívio que encontramos um retrato carinhoso, porém sem idealizações fáceis. A escritora e ativista possui uma trajetória interessantíssima, narrada pela própria com uma eloquência e um senso crítico invejáveis. A proximidade entre a diretora e a biografada resulta em conversas ao mesmo tempo informais e informativas. O documentário consegue aliar o melhor dos dois mundos: a imersão (pelo senso de proximidade, o bate-papo no jardim, a presença da diretora na imagem ao lado de Rosiska) e o distanciamento (a avaliação da própria trajetória, as reflexões históricas e políticas).

A montagem efetua um ótimo trabalho ao articular tantos temas e passagens, em saltos temporais ágeis. As diversas viagens de Rosiska transformam o filme num road movie recheado de passagens memoráveis (as entrevistas com jornalistas machistas, os depoimentos esclarecedores de Beauvoir) e imagens de arquivo surpreendentes que escancaram a evolução das mulheres no mundo ocidental. Elogio da Liberdade não apenas menciona diversas passagens, mas explica os laços orgânicos que unem filosofia e política, programas de televisão e ditadura militar, feminismo e redes sociais. Deste modo, evita o problema comum aos documentários históricos que meramente listam fatos, criando relações de causa e consequência problemáticas (post hoc ergo propter hoc). Comparato está menos interessada nos “melhores momentos” da História do que nas tendências amplas que possibilitaram transformações.

Apesar do discurso louvável, o projeto é fragilizado por algumas escolhas estéticas. A direção aposta em uma série de filtros de imagem, que vão das bordas arredondadas à mistura entre preto e branco e colorido, passando por uma série de texturas digitais aplicadas sobre o rosto de Rosiska. As intervenções quase onipresentes soam aleatórias, além de chamarem demasiada atenção ao dispositivo cinematográfico, prejudicando a organicidade do discurso. Além disso, a trilha sonora soa óbvias demais (para apresentar a África e o Rio de Janeiro, por exemplo), e alguns instantes transparecem problemas na edição de som e na manipulação de fotografias de arquivo (uma foto pixelizada com Paulo Freire, em especial). Trata-se de detalhes, no entanto, dentro de um projeto coeso e bem desenvolvido.

Elogio da Liberdade se ergue sobre uma estrutura convencional: a mistura entre depoimentos e imagens de arquivo, utilizando fotografias e vídeos como suporte ilustrativo da descrição sonora. No entanto, dentro deste formato limitado, consegue embutir um volume surpreendente de reflexões, de modo fluido e adequado ao público do século XX. Além disso, encontra uma maneira poética de expor os textos de Rosiska Darcy de Oliveira, articulados com a vivência da protagonista e com passagens da História do Brasil. Este início tão promissor desperta boas expectativas para os próximos passos de Comparato na direção.