Críticas AdoroCinema
4,0
Muito bom
Litigante

Uma mulher submersa

por Bruno Carmelo

É muito bom encontrar no cinema latino-americano contemporâneo um retrato femininos como Litigante. O drama colombiano apresenta a vida de uma mulher adulta que equilibra as responsabilidades comuns à classe média: cuidar do filho pequeno, da mãe idosa e doente, gerenciar as pressões no trabalho, tentar encontrar algum espaço para a vida afetiva. O feminino não é associado aos pressupostos de delicadeza, sensibilidade extrema, vaidade, e tampouco é definido em oposição aos homens. A advogada Silvia (Carolina Sanin) tem sua jornada retratada com respeito, e longe de idealizações.

Acima de tudo, Silvia se encontra soterrada de responsabilidades. O roteiro aborda bem a pressão excedente nas mulheres devido à maternidade: ela cuida sozinha do filho pequeno, pois o pai da criança preferiu não se envolver, e toma decisões importantes dentro de uma empresa, mas assim que surgem conflitos com a diretoria, os homens do alto escalão culpam as atribuições maternas pelos resultados considerados insuficientes. O diretor Franco Lolli evita transformar estes questionamentos em bandeira política, mas faz questão de salientar o peso que desempenham na estafa da protagonista, em adição a outros conflitos igualmente importantes. Sanin, excelente atriz, demonstra um misto de vigor e esgotamento, manejando uma ampla variedade emocional sem recorrer às lágrimas fáceis.

Litigante impressiona pela construção bruta da personagem, o que não implica numa narrativa fria. A imagem providencia certa ternura pela câmera muito atenta à protagonista, ainda que tome certa distância ao corpo e ao rosto; deslocando-se livremente, porém sem despertar atenção excessiva a si mesma. A textura da película, muito bem-vinda em tempos digitais, resgata um afeto diegético e também cinéfilo, além de permitir à direção de fotografia trabalhar com ótimos tons contrastados e zonas escuras fundamentais para representar o estado psicológico da advogada. Lolli oferece um estilo polido e excepcionalmente bem editado, embora longe do estetismo. Esta abordagem poderia ser considerada modesta ou classicista, a gosto. Em meio a tantos autores vaidosos com sua capacidade de criação, Lolli possui o notável mérito de encontrar a estética que melhor serve à narrativa, caminhando junto desta sem se tornar refém do tema, nem se sobrepor a ele.

O título contribui a enxergar esta mulher enquanto profissional, mas também a valorizar a impressão de que ela trabalha vinte e quatro horas por dia: mesmo fora da esfera jurídica, precisa negociar com a mãe doente o retorno à quimioterapia, debater com o novo namorado a necessidade de um espaço para si própria, convencer o filho pequeno de fazer suas refeições e esperar por ela. Assim como o recente Família Submersa, o filme colombiano compreende que a crise não permite à protagonista tomar um tempo afastada para digerir os problemas. A vida continua, as responsabilidades diárias se impõem. Silvia precisa lidar com a provável morte da mãe e iminente demissão enquanto presta atenção aos horários do ônibus do filho e às demandas da empregada doméstica. Não é possível criar um parêntese em meio ao turbilhão.

Enquanto a estrutura clássica do cinema americano – seja ele hollywoodiano ou do circuito alternativo – permite a descrição de problemas contanto que se ofereça uma solução satisfatória ao final (e também uma recompensa emocional ao espectador), o cinema latino-americano tem traçado retratos crus nos quais não há horizonte de melhora, apenas uma gestão diária do caos, uma contenção de gastos. Nem otimista, nem fatalista, Lolli une-se a Lucrecia Martel, Sebastián Lelio, Pablo LarraínMaria AlchéJonatan Relayze para descrever mulheres adultas cuja vida continua, sem caminho preciso, e apesar das dificuldades. Este tipo de aceitação dos conflitos jamais implica no conformismo, apenas uma forma de retirar da mulher a obrigação de ser uma heroína, de superar todas as dificuldades enquanto se mantém uma mãe perfeita, uma funcionária exemplar e uma amante voraz. Na distância das cobranças e idealizações se encontra uma bela forma de respeito à diversidade feminina.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.