Uma dor não canalizada
por Barbara DemerovÀ distância, um tanto escondida, uma mulher observa uma médica entrar no hospital com dor em seus olhar. Não sabemos por que ela se encontra ali, como se fosse uma vigia, mas o filme não tarda em abrir suas inúmeras camadas para nos explicar que aquela mulher em questão supostamente pariu um filho natimorto há 18 anos e ainda vive com a angústia de não acreditar nesta história - nem nos documentos oficiais, tampouco na médica (a mesma da cena inicial) que realizou o parto. Em poucos minutos, podemos sentir tal dor em sua casa, com marido e filha observando incrédulos Ana (Snežana Bogdanović) assoprando velas de aniversário ao filho que nunca existiu.
Os dois primeiros atos são um mergulho muito profundo na mente de uma mãe que é desacreditada a todo o momento. Seu luto não consegue ser superado porque nunca lhe deram o endereço onde enterraram seu filho após o parto - fato esse que a fez ir atrás da polícia e do hospital por muitos e muitos anos. O comportamento de sua filha e seu marido para com Ana pode parecer insensível num primeiro momento, mas o filme não deixa de salientar que ambos também sofreram (e ainda sofrem) com a ausência desse filho e irmão.
Com a câmera bem focada em Ana por boa parte do tempo, a direção se une a tons frios que fazem parte do entorno da personagem, e que também representam o que ela sente por dentro. Diante de tantas respostas negativas e até agressivas de terceiros, Ana passa a questionar sua sanidade, mas há uma pequena porcentagem de esperança na qual ela resolve se ater com força. Isso resulta em mais conflitos familiares, especialmente com sua filha, que de certa forma também se sente uma filha sem mãe, uma vez que Ana dedicou boa parte de sua existência na busca pelo filho perdido.
Seu trabalho como costureira também pode ser visto como uma analogia ao título do filme, Cicatrizes. O ato de costurar e remendar roupas poderia ser correlativo a como Ana trata a si mesma, mas ela não cuida de suas próprias feridas de modo a "costurá-las" e deixá-las totalmente curadas, assim como uma roupa tratada parece como nova. Pelo contrário, a protagonista vive às sombras da própria dor, sem nem dizer sua dor em voz alta. Tudo o que Ana sente pode ser visto tanto em seu olhar como pelos lugares onde passa - escuros, que remetem a uma prisão e a uma sensação de isolamento que é quase impossível de deixar de existir.
No entanto, durante a troca de atos (em algum momento durante o segundo para o terceiro), temos uma troca de perspectivas. Da mãe desesperada para saber se o filho está vivo e foi adotado, vamos para a filha, a irmã que quer saber se o irmão está com outra família. Tal troca soa um tanto apressada, especialmente pela relação frágil entre Ana e sua filha, mas isso não é o bastante para enfraquecer o que a narrativa quer nos passar. Dessa forma, Cicatrizes se torna um filme até um pouco mais leve e colorido quando o protagonismo e a dúvida passam a ser divididos, evidenciando que com um pouco de união as coisas passam a serem resolvidas mais facilmente (se isso for possível). O ritmo da narrativa passa a ser mais dinâmico, um tanto mais fácil de ser digerido diante de uma trama tão forte. Porém, a sensação de angústia nunca se ausenta pois, em essência, trata-se de uma história humanizada de maneira coerente e precisa, aproveitando ao máximo uma protagonista que, acima do fato de ser forte, possui o instinto que só quem é mãe pode entender.
Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.