Na contramão de tudo
por Renato Furtado"Gaúcho!", busca um homem aos gritos, em frente à casa do procurado. Não há resposta, conforme o dono da propriedade sobre por uma escada, pé ante pé, tentando esconder-se no silêncio da noite. Os berros continuam e quando o famigerado Gaúcho chega ao telhado, percebe que o coletor de dívidas que está na sua cola trouxe quatro capangas, o que apresenta duas alternativas: o endividado pode tentar seguir nas sombras, uma estratégia que não tem dado muito certo, ou pode reunir uma braçada de tijolos sobressalentes da obra em andamento em sua casa e atirar na direção de seus mais novos inimigos. Na dúvida, o radical Vermelha opta sempre pela segunda saída: brigar, trazendo gargalhadas no processo.
Até, é claro, a alternativa de número #2 tornar-se a de número #1 pela via mais caótica possível: nesta comédia absurda do goiano Getúlio Ribeiro, que faz sua estreia como realizador de longas com muita propriedade, o espectador é tratado como um adversário a ser driblado. Recusando a lógica da linearidade e praticando a linguagem cinematográfica como um idioma estrangeiro que não conhecemos, o filme faz o impossível para nos surpreender — afinal, não é nada comum presenciar uma acalorada discussão sobre a imprecisão do sistema métrico agrário pelas propriedades rurais Brasil afora, com alqueires entrando em conflito com hectares: esta é uma narrativa que eleva o prosaico ao nível do surreal.
De digestão complexa de início, decorrência de um muito hábil ato de manipulação da estranheza e do incômodo que está no cerne deste projeto, Vermelha é fundado sobre uma série de ocorrências corriqueiras e banais, retalhadas e costuradas por um fio condutor propositalmente errante. Antagonizando deliberadamente todas as expectativas e constantemente retorcendo o uso mais básico de algumas das ferramentas mais fundamentais da sétima arte, como o plano/contraplano, Ribeiro cria uma temporalidade esparsa neste longa, ora tratando a trivialidade como uma sequência incoerente e disparatada de vinhetas, ora como em um demorado relato.
Ao embaralhar nossa percepção sobre o que é cotidiano, portanto repetitivo, e o que é imaginário, a comédia situa-se na instigante zona cinzenta da realidade. Sons carregam consigo pressuposições de imagens que nunca vemos, a televisão demora-se em reportagens melodramáticas sobre resgates caninos, um fantasma volta à vida, males súbitos acarretam divertidamente mórbidos falecimentos inauditos, um sonho erótico é lido com a mesma empolgação causada pela frieza de uma bula de remédios e um homem, armado com um bastão, assume um papel de justiceiro improvável, naquela que é a cena mais caricata da projeção. Anedotas, são assim, justapostas àquela qualidade de fantasia que só a vida pode apresentar.
Provocar desconforto através de uma incongruência voluntariamente pretendida pode ser um tiro no pé, e a comédia definitivamente pode afastar parte do público, especialmente no início da trama, quando o telhado de zinco ainda não tem nenhuma relação com a raiz de uma árvore atingida por um raio. Por outro lado, Ribeiro demonstra total ciência de suas exigentes demandas e exibe ousadia ao não aceitar nada menos do que nossa total participação ativa: em Vermelha, o espectador — aquele que tradicionalmente espera, que observa passivamente — recebe não só as peças de um intrincado quebra-cabeça, como também a missão de desvendar o enigma.
Esta não é uma inovação, é claro. Realizadores de interesses totalmente distintos, como Alain Resnais, Shane Carruth e Apichatpong Weerasethakul fizeram da experimentação com montagens lacunares e temporalidades dilatadas seu principal campo de estudo. O diferencial de Vermelha, no entanto, é ser um singular tratado brasileiro e autoficcional — como no cinema de André Novais Oliveira (Ela Volta na Quinta), a família real do diretor desempenha o protagonismo da ficção — sobre a hilária aleatoriedade da existência, mas calcado no humor. Porque quando aceitamos negociar com este desafio oblíquo, é um verdadeiro prazer tentar — e falhar em — acompanhar sua vertiginosa estrutura.
Não importa se Beto e Gaúcho trocam socos de fato ou não naquela que é possivelmente a mais ridícula e burlesca sequência de pancadaria do cinema nacional. O que é relevante perceber é como sempre precisamos estar atentos para os sinais que nos são enviados, e que o significado último dos mesmos é tão irrelevante para a totalidade da empreitada quanto a brevíssima cena de sexo entre Débora e o rapaz que parece ser seu namorado — e que, é claro, pode não ser. Nos fazer apreciar a geometria irregular, mas precisa, de Vermelha, evidenciada pelo tratamento criativo da locação única, que resguarda segredos e subtramas paralelas em cada canto e rachadura, é o verdadeiro mérito do filme e de seu realizador.
Na contramão de tudo e de todos, esta comédia cubista ordena uma escolha e não se submete às pressões: ou embarcamos na insana viagem ou capitulamos perante o frustrante acaso. Essa desdordem, no entanto, passa por um lugar de controle estrito: por mais que tudo pareça fora do lugar, como a bela e nada extraordinária cena de dança na cozinha, ladeada por imagens do conflito central entre Gaúcho e o cobrador de dívidas, tudo está onde deveria estar. E para encerrar, uma questão: seria Vermelha apenas um tributo ou uma referência ao ponto de vista da cadela-titular, a carismática cachorrinha dos Ribeiro, sobre esta barafunda de ocorrências? Como no resto do longa, não há lógica factível: este é o triunfo.
Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.