Odessa não é aqui
por Renato FurtadoBrasil, 2018: com a indignação em um dos olhos e o incômodo profundo no outro, uma jovem adentra o fluxo das multidões, que elevam suas vozes em um protesto uníssono. Outra cena, tempo desconhecido: uma gigantesca aglomeração de pessoas, em preto e branco, reunidas pela efervescência do espírito da revolta. Para o bom conhecedor da sétima arte, no entanto, o segundo levante não guarda nenhuma surpresa: é a insurreição de Odessa, centro de O Encouraçado Potemkin (1925), clássico do cinema soviético e da obra de um dos maiores mestres da sétima arte, Serguei Eisenstein — cujo resgate, aliás, demonstra que a justaposição promovida entre lá e cá por Depois da Farsa não é mero produto do acaso.
Hermética, contudo, esta experimentação brasileira que intenta digerir a atual crise politica e moral do titã latino-americano falha em seguir a cartilha estabelecida pelo influente realizador russo. Onde Eisenstein materializa a alma revolucionária das greves por meio de sua montagem de choques — que instiga o espectador a produzir uma síntese em sua própria mente a partir de duas imagens que não se costuram —, o quarteto de diretores (Cristiano Burlan, Dellani Lima, Frederico Machado e Taciano Valério) por trás desta desconjuntada tese filmica faz o contrário. Ao invés de inflamar, comunicar e agregar, missão de propaganda que guiava o soviético, destaca-se aqui o afastamento provocado pelo frio Depois da Farsa.
Fundamentado sobre uma colagem de texturas múltiplas, que somam cenas de cinejornais europeus a algumas das emissões radiofônicas de ambas as ditaduras brasileiras — a de Getúlio Vargas e a dos militares —, o longa tem como objetivo justificar o aforismo marxista: primeiro como farsa, depois como tragédia, acusando a repetição do tempo e das barbáries, particularmente em uma nação e em um mundo que não aprenderam com os erros de seu passado. Mas a questão, de fato, é que este experimento não inova e nem refresca um debate estabelecido ao redor de duas ideias: a crise de memória que assola o Brasil; e a correlação entre o autoritarismo das décadas de 1960 e 1970 e o dos dias atuais.
É claro que registrar os ecos pretéritos e apontar o que nos liga com o nosso passado sombrio para provar a hipótese de Marx é, por si só, uma tarefa consistente, válida e necessária. Por outro lado, Depois da Farsa posiciona-se, de maneira óbvia, para muito além da fronteira da mera denúncia, com o desejo manifesto de abordar o debate a partir de uma ótica disruptiva e desafiadora que, paradoxalmente, mantém a superficialidade ao invés de penetrar nas profundezas do colapso nacional. Sob a máscara da experimentação — que via de regra escancara uma auto indulgência intrínseca e, às vezes, indispensável —, esta obra desfia pontas soltas que se aglutinam em um emaranhado desconexo.
Não há nada, nem mesmo o esforço ou a complacência do espectador, que possa costurar o que a pouco hábil montagem desta obra não cose: são sequências após sequências que terminam ou não se complementam. Ao passo em que é interessante o fato de quatro cineastas assinem este projeto, garantindo uma multiplicidade de pontos de vista e de interpretações sobre o presente contexto brasileiro, estes prismas não operam em ritmo de adição. E nem mesmo de subtração para criar, quem sabe, um choque de alteridades: são apenas visões distintas, ainda que politicamente semelhantes, acarretando confusão e caos ao invés de crítica una, harmônica e potente em sua antagônica diversidade.
Mesmo que sejam "cenas de uma mesma vida", a repentina revolta da empregada que formou-se como educadora física mas é humilhada por sua empregadora por causa de seu passado como doméstica e um pouco factível, por mais que possível, plano terrorista de um homem-bomba só poderiam ser concatenadas por um direcionamento consonante. Do contrário, como ocorre em Depois da Farsa no fim das contas, as sequências não conversam necessariamente. Instigar o público a preencher lacunas para gerar uma resposta individual de cada espectador é uma intenção louvável, particularmente na era da fake news e da demolição do ideal de verdade, mas é preciso fornecer dados minimamente encadeáveis entre si.
Depois da Farsa é, enfim, um quebra-cabeças meramente tangencial e alheio ao próprio tecido da malha da realidade que objetiva desconstruir e abordar. A comparação com Eisenstein, ironicamente suscitada por este longa, não poderia ser mais fortuita: se o russo provocava e estimulava o pensamento das massas com um controle rígido sobre a forma fílmica, os brasileiros evitam as conclusões, trabalhando na aberta linguagem da experimentação ao mesmo tempo em que também parecem alcançar a promoção da organização popular feita pelo soviético. É realmente uma questão de metodologia, onde o híbrido entre duas abordagens polarizantes produz, inevitavelmente, um defeituoso e nada mobilizador produto.
Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.