O verdadeiro multiverso da loucura
por Aline PereiraA primeira vez em que tive contato com a produção de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo foi por meio das palavras do diretor mexicano Guillermo del Toro: “Eu acredito que nada importa e por isso tudo importa. Vão assistir”, escreveu o cineasta, no Twitter, em meio a uma longa lista de elogios sobre as inovações em formato, ritmo e reflexões propostas pela história. A recomendação "enigmática" de um dos mestres do terror fantástico, de fato, adiantou um pouco da grandeza do longa. Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, um dos maiores filmes da produtora A24 (inclusive em bilheteria), é tudo isso e muito mais (ao mesmo tempo).
Dirigido pela dupla Daniel Kwan e Daniel Scheinert (Um Cadáver Para Sobreviver), Tudo em Todo o Lugar tem como protagonista Evelyn (Michelle Yeoh), administradora de uma lavanderia familiar e dividida entre uma infinidade de tarefas ao longo do dia: dos cuidados com o pai, que a abandonou na juventude, mas agora precisa de suporte, às negociações das dívidas de seu negócio, que está por um fio e sob a mira de uma auditora implacável, interpretada brilhantemente por Jamie Lee Curtis.
Sentindo-se responsável por tudo e todos, Evelyn não tem um momento de pausa durante seus dias, o que a faz passar como um furacão pela vida do marido e da filha, que completam o grupo de protagonistas. Waymond (Ke Huy Quan) e a adolescente Joy (Stephanie Hsu) entram na história quase como “vítimas” de Evelyn: um marido sem nenhuma autonomia ou atenção da esposa e uma filha sem liberdade para ser quem é.
Tudo isso se transforma quando Evelyn recebe um “chamado” interdimensional e, com a missão de salvar todos os mundos, descobre a existência de um verdadeiro multiverso de -muita- loucura (com o perdão de Doutor Estranho 2 e dos diretores da Marvel, Joe e Anthony Russo, que assinam a produção deste filme), que está sob ameaça. A partir desta premissa, temos uma história em que nada parece ter muita coerência, mas em que tudo faz completo sentido justamente porque a realidade também nem sempre é coerente.
Cada escolha é uma sentença, mas nunca sabemos qual
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo levanta uma variedade enorme de interpretações que podem ser profundamente pessoais. Uma das que mais me chama atenção é um real filme de terror: imagine se você pudesse saber tudo o que poderia ter acontecido na sua vida se tivesse feito escolhas diferentes? Dificilmente alguém passaria psicologicamente ileso por uma experiência como essa e ela surge como uma bomba no caminho de Evelyn. No multiverso das realidades, a protagonista reencontra muitas das figuras que já fazem parte de sua vida “principal”, mas os contextos e experiências completamente diferentes também mudam seu relacionamento com estas pessoas. Toda escolha muda tudo.
A questão é que não só o resultado das escolhas parece completamente aleatório, como também há a sensação de que não temos sequer conhecimento da existência destas opções. A vastidão de possibilidades é tão avassaladora que parece ser impossível ter acesso a elas e este é um dos pontos mais brilhantes de Tudo em Todo o Lugar. As escolhas visuais e de edição do filme conseguem traduzir conceitos extremamente abstratos. Não faltam no cinema histórias que abordam o sentimento de "fim do mundo" provocado por situações caóticas e inesperadas, mas aqui temos um feito inacreditável: o caos e a surpresa são personagens quase físicos, palpáveis.
Tudo em Todo o Lugar vai além de qualquer outra trama na ideia da aleatoriedade da vida, dos caminhos percorridos, dos acontecimentos, da maneira como pessoas e situações surgem e vão embora. Ao nos deparamos com a infinidade do mundo, fica fácil - até cômodo - chegar à conclusão, então, de que nada tem tanta importância assim, mas o longa nos oferece uma perspectiva de que é justamente esta imensidão que torna os detalhes e momentos tão importantes - eles nos levam de um ponto a outro.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é um filme tão grandioso, quanto íntimo
Daniel Kwan e Daniel Scheinert conseguiram unir o que há de melhor nas superproduções e nos filmes mais intimistas e impressiona tanto na grandiosidade visual, quanto na profundidade dos temas abordados. A sensação é de que os diretores se antecipam à imaginação do público e, realmente, controlam o caos. Cada recurso - de imagem e de roteiro - empregado é meticulosamente articulado para “abraçar” a ideia de infinitude. O uso que os diretores fazem das possibilidades da arte são um grande exemplo do porquê ela existe e isso torna este filme uma obra para ver e rever muitas vezes.
Evelyn está longe de ser uma super-heroína e observar uma pessoa comum ser confrontada com forças inimagináveis é uma experiência de tirar o fôlego. É fácil nos deixarmos transportar pela história dela e encontrar nos detalhes mais absurdos as semelhanças com o que há de mais corriqueiro e banal em nossa realidade. Todos os cantos do multiverso apresentado têm algo de muito parecido com o que conhecemos - aliás, esta identificação talvez seja parte do “super poder” humano de se adaptar, de encontrar uma saída. Sempre existe algo de familiar mesmo nos lugares mais improváveis.
A dinâmica entre Evelyn e a família também é um ponto para prestar atenção: a forma como a protagonista se coloca na relação com os dois diz muito sobre um ciclo de perpetuação de comportamentos. Evelyn reproduz muitos dos padrões que aprendeu ao longo de sua vida de forma inconsciente - com o dia a dia sem pausa, nos arriscamos a entrar em um modo de piloto automático que é perigoso.
“Não se esqueça de respirar”
Ao pular entre multiversos, Evelyn recebe um conselho que parece óbvio, mas valioso e precisa ser reforçado: “não se esqueça de respirar”. Vale para ela e, claro, para quem está assistindo. Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo nos lembra da sensação de sufocamento e pressa que já é presença marcada na vida de muitas pessoas, mas também faz pensar que, em um mundo no qual tudo acontece o tempo todo e que as possibilidades parecem infinitas e sem ordem, alguns acontecimentos são verdadeiros milagres.