Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Trágicas

O eterno retorno da tragédia

por Renato Furtado

Mal podendo conter o desespero face à devastadora realidade que guia suas escolhas desde a morte de seu irmão, uma mulher luta e batalha para reaver o cadáver insepulto e desaparecido de seu parente, com a vontade de trazer justiça para os mortos com a última coisa que lhes cabe após tanta violência: um enterro digno, um funeral próprio. Os versados na tragédia grega reconhecerão diretamente neste parágrafo um breve resumo de "Antígona", uma das mais influentes obras teatrais do pioneiro Sófocles. A realizadora Aída Marques, por sua vez, vislumbrou uma linha paralela — muito mais sombria que a reta que evoca a supracitada peça —, "figura geométrica" esta que originou o documentário Trágicas.

Justapondo e conjugando dois registros díspares — o da representação e o da confissão, tensionamento classicamente explorado pelo cinema de não-ficção —, a cineasta busca o choque entre a encenação e o testemunho. De um lado, temos a atriz Gisela de Castro, responsável por interpretar três das mais importantes mulheres da tragédia grega: Antígona, Electra e Medeia. Do outro, como antítese ao "fingimento" da performance cênica, encontramos a verdade, encarnada por um grupo de mulheres inicialmente anônimas, que possuem uma semelhança muito importante, e sofrida, com as criações do teatro helênico: o fato de que elas carregam as marcas da violência no corpo e no espírito.

De pronto, Trágicas anuncia seu intuito: observar a condição da figura feminina contemporânea no Brasil a partir de uma forma narrativa que se repete até os dias de hoje, infelizmente, nas trajetórias de inúmeras mulheres ao redor do mundo. Nos duríssimos relatos e depoimentos colhidos por Marques, encontramos irmãs que ainda tentam achar os restos mortais de seus irmãos, desaparecidos durante o período ditadorial em nosso país; mães negras que perderam seus filhos, também negros, por causa da brutalidade policial, que abusa do poder para exercer um controle sanguinário sobre as populações marginalizadas do Rio de Janeiro; e, por fim, refugiadas africanas, que tentam recomeçar suas vidas do lado de cá do oceano.

Independentemente de seus passados distintos, quase todas elas são mulheres cujas existências foram permanentemente alteradas, manchadas e/ou destruídas por perdas inimagináveis ou por atos brutais, em um país que atualmente (2019) ocupa a 5ª posição no cruel e atroz ranking do feminicídio. Assim, tendo em vista este cenário mais do que alarmante, Marques — pesquisadora especialista na união entre cinema, teatro e literatura — concretiza a ponte teórica com as personagens das tragédias gregas: tanto lá quanto cá, vemos registros de mulheres que não conseguem escapar dos destinos violentos que lhes são impostos por homens (sejam eles personagens divinos ou humanos, demasiado humanos).

Mas o problema, infelizmente, é a prática, que falha em concretizar a interessante e atual proposta de Trágicas. Na ausência de uma preocupação estética mais apurada, as imagens do documentário acabam por funcionar mais como um suporte visual de luxo para o seu conteúdo. Aqui, a substância conta muito mais do que a forma, o que é um problema em si, já que a intrincada estrutura desenhada pela diretora precisava de uma atenção muito maior do que a que recebeu. Na tela, temos, portanto, dois pólos narrativos que quase não conversam entre si, que só se entrelaçam ocasionalmente; é como, em outras palavras, trocar desodernadamente de frequência entre dois canais televisivo que não se completam.

É uma questão, sobretudo, de montagem. O roteiro tem um embasamento teórico sólido, principalmente em seu terço inicial, onde Antígona mistura-se à perfeição com os testemunhos de duas mulheres que tentam sepultar seus irmãos, mortos pelo regime militar ditatorial brasileiro. Aproveitando diálogos que declaram que o medo é a arma dos tiranos e que a violência é a mãe da violência, Trágicas demonstra que os textos de Sófocles e de Eurípides ainda podem tecer comentários relevantes sobre nossos tempos. Por outro lado, o documentário escorrega justamente na sua indefinição narrativa, habitando um território intermediário entre as não-ficções lineares e as experimentações mais ousadas.

A ideia de chocar o confessional e o teatral já foi trabalhada por documentaristas brasileiros que poderiam servir como forte inspiração para o projeto de Marques, como Petra Costa (Elena) e Eduardo Coutinho (Jogo de Cena). Ambos, ainda que por meios muito diferentes, exploram a zona cinzenta que Trágicas deixa entrever, por brevíssimos instantes, em sua curta sequência final, na qual de Castro, a protagonista, caminha pelas ruas do Rio de Janeiro. Aquela atriz, que acabou de encenar Antígona, Electra e Medeia perante nossos olhos, também é uma mulher — e ser mulher, no Brasil e na capital fluminense, é tristemente estar em situação de risco, como comprovam os relatos que constituem este longa.

O descompasso entre os dois âmbitos é tamanho que a hipoteticamente rápida 1h10 de duração de Trágicas parece se alongar mais do que a passagem do tempo real, particularmente quando as cenas teatrais estendem-se para além do necessário, distanciando-nos daquele que é o verdadeiro triunfo desta obra, para além das promessas contidas em sua premissa: dar voz às e registrar a expressão das figuras femininas que estuda. De Castro é uma boa atriz, e isto é um fato: ela interpreta com grande competência as complexas personagens que aparecem em seu caminho. Mas isto não é o bastante porque sua presença acaba sendo deslocada e diluída pelos depoimentos, e vice-versa.

Como narrativa coesa em si, este esforço cinematográfico de Marques é pouquíssimo funcional: a diretora mira alto, mas jamais alcança o nível necessário para dar conta de suas audazes intenções — a tragédia grega poderia ser empregada, por exemplo, para tecer comentários sutis, quase imperceptíveis; ou, por outra perspectiva, chutar de vez o balde e investir ao máximo na ideia de borrar as tênues linhas que mal separam a representação (ficção) da confissão (verdade). No fim, Trágicas justifica sua existência por somar mais uma voz ao coro de denúncias contra as omissões estatais, as violências domésticas e os abusos de poder — é um discurso necessário, mas que não sucede como filme neste caso.

Filme visto na 22ª Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2019.