Há perigo na esquina
por Bruno CarmeloEste drama belga se ataca a um tema tão importante quanto vasto: o medo disseminado entre os moradores das cidades grandes, o temor da violência, o fantasma do terrorismo, a impressão de solidão em meio a tantos habitantes, a conversão dos cidadãos em pessoas cronicamente depressivas, neuróticas e paranoicas. O “buraco do inferno”, sugerido pelo título, é Bruxelas, “capital do mundo do jihadismo”, como lembra uma estudante na escola. Em estrutura coral, somos apresentados a meia dúzia de personagens que não vivem em desespero, apenas uma melancolia constante, uma descrença no futuro.
Alba (Alba Rohrwacher) é uma tradutora italiana vivendo sozinha na Bélgica, onde conhece poucas pessoas e não fala a língua local, Mehdi (Hamsa Belarbi) é um jovem de origem árabe, lutando contra dores de cabeça constantes e a desconfiança dos cidadãos brancos sobre sua integridade, Wannes (Willy Thomas) é um médico belga solitário, vivendo com a doença do pai enquanto sente que seus esforços para ajudar as pessoas são em vão, Samira (Lubna Azabal) desenvolve um temor constante por ter pego o mesmo metrô que, poucos dias depois, foi alvo de um atentado. Eles vivem em apartamentos amplos e vazios, e transitam por ruas obscuras.
Hellhole se destaca pela construção potente da atmosfera desoladora. Bas Devos sempre foi conhecido pelo formalismo, às vezes excessivo, porém desta vez bem aplicado ao tema. Impressiona o modo como ele decide literalmente contornar esquinas com a sua câmera, em movimentos lentíssimos, como se tiver medo de descobrir o que existe por trás das colunas dos prédios. O trabalho de câmera, aliás, é magistral: o filme apresenta grandes arcos circulares de uma precisão muito superior aos steadycams e drones, e muito mais fluidos que os deslocamentos sobre trilhos ou gruas. O giro ininterrupto de 360º em torno de uma casa, enquanto o sol nasce e transforma a luminosidade da cena – revelando os cômodos tristes e os personagens solitários – representa uma conjunção rara entre maestria estética, criatividade e excelente escolha de linguagem para a temática em questão.
Outros recursos inventivos se destacam como a luz verde “escaneando” os jovens que dançam num clube noturno, e os longos instantes com a tela preta, sem imagens, enquanto os barulhos sugerem ao espectador a mesma paranoia viva pelos personagens. É compreensível que, entre tantas tentativas de inovação, algumas soem deslocadas, caso da cena de videogame, clichê máximo de filmes sobre juventude violenta – é possível retratar o terrorismo sem mostrar adolescentes jogando games de tiros em primeira pessoa? – ou a decisão de implicar o irmão de Mehdi no mundo do crime. É claro que, como o próprio garoto não possui qualquer relação com atividades ilegais, a representação se equilibra. No entanto, a decisão de associar a única cena de contravenção a um personagem árabe pode ser contestada.
Por fim, o discurso de Hellhole se complexifica ao buscar as origens deste cenário caótico. Devos culpa, em partes, a própria Bélgica por sua violência, através de belas cenas que representam o apoio dos belgas às guerras em países árabes. Bruxelas, sede do Parlamento Europeu, é transformada em símbolo de um local cuja riqueza não se traduz em liberdade nem em igualdade de oportunidades aos moradores. Sem precisar filmar uma única cena de violência física, o diretor sugere algo igualmente potente através do uso de sons e imagens, das sugestões metafóricas e do uso de símbolos – vide a filmagem silenciosa e sensual de um caça de guerra. De acordo com o filme, o país europeu está colhendo os frutos de uma política plantada por ele mesmo. Que os cidadãos concordem ou não com esta postura ou não, são afetados da mesma maneira.
Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.