Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Flatland

Mulheres em fuga

por Bruno Carmelo

Cuidado: elas estão armadas. As três personagens principais, Natalie (Nicole Fortuin), Poppie (Izel Bezuidenhout) e Beauty Cuba (Faith Baloyi) são vistas em suas primeiras cenas com uma arma na mão. A primeira aponta o revólver ao marido durante a noite de núpcias, após ser estuprada, a segunda mira a tia grosseira e exploradora, e a terceira, em seu trabalho como policial, treina tiro ao alvo. Estas três mulheres sul-africanas, desprezadas e maltratadas por homens, decidem tomar o destino em mãos apesar das convenções sociais.

Flatland chama a atenção por misturar tantos gêneros e tendências. A diretora Jenna Bass combina elementos do road movie, do buddy movie, da comédia de costumes, do filme policial, do romance e do suspense. Consciente de seu tom exagerado – a policial em seus agasalhos rosa-choque, a noiva tímida demais –, compara-se às telenovelas mal dirigidas da rede aberta, a que os personagens assistem com frequência. Entre citações a Thelma e Louise e um encaminhar tarantinesco, a cineasta assume com humor o absurdo das cenas, tornando o conteúdo leve, acessível.

Ao mesmo tempo, dedica-se a traçar um painel crítico da África do Sul, tanto pelo racismo vigente, que afeta Natalie e Beauty Cuba, quanto pelo machismo e a sensação de impunidade. O filme observa um país multiétnico no qual os homens, frágeis, ainda tentam dominar os relacionamentos e os laços sociais. “Não é possível ser homem neste país”, contesta a policial a um sujeito que se acredita no direito de agredi-la. A tentativa de fuga de Natalie e Poppie, a bordo de um cavalo, um carro e um caminhão significa escapar a este mecanismo nocivo, ainda que não saibam para onde ir, nem a que aspirar para o futuro. A trajetória de ambas é motivada pelo instinto de sobrevivência.

Infelizmente, conforme a trama se desenvolve, Flatland perde seus rumos e seu controle. O road movie passa a girar em círculos: quanto mais tentam escapar, mais as mulheres retornam ao lugar de onde vieram, e às pessoas que as prendiam. Cientes da impossibilidade quase cósmica de deserção, elas se viram umas contra as outras e, ao invés de um ato de sororidade, elaboram planos egoístas que consistem em entregar as mulheres de volta a seus abusadores. Isso poderia ser visto com olhar irônico, no entanto Bass parece segura de estar dando um final feliz às mulheres. A conclusão, quando todas as subtramas se cruzam, se transforma numa confusão pouco eficaz em termos narrativos e de ritmo.

Outro elemento questionável é a obsessão da diretora por close-ups e planos de detalhe. A cena inicial – o casamento forçado, o estupro, a fuga a cavalo – são vistos quase unicamente por fragmentos entrecortados de rostos, mãos, pernas, pêlos do animal. Sempre que a narrativa exige tensão, Bass aproxima os enquadramentos e fragmenta a montagem, numa escolha de imersão forçada e óbvia. Assim, não há meios-termos: ou as personagens são vistas perto demais, ou distantes demais, quando andam a cavalo. Em meio a esta configuração incomum para apresentar personagens, Izel Bezuidenhout compõe com naturalidade a garota alegre e irresponsável, enquanto Faith Baloyi consegue atribuir gravidade a uma personagem que poderia facilmente cair no ridículo. Apenas Nicole Fortuin, no papel principal, demonstra uma atuação opaca, carregando nas tintas no começo e no final, e tornando-se apática demais em toda a aventura central.

Flatland pode ser considerado bem-sucedido na construção do protagonismo feminino, inclusive do protagonismo negro. É evidente a vontade de emancipar estas mulheres através do convite à aventura. No entanto, quanto mais se alonga, mais corre o risco de abandonar a independência das personagens em troca das reviravoltas do roteiro, e de uma visão de mundo um tanto conservadora no que diz respeito ao casamento e à maternidade. A colorida comédia de erros termina com um gosto amargo.

Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.