Os capitalistas do Agreste
por Bruno CarmeloQuem diria que o personagem principal deste documentário seria o próprio diretor, Marcelo Gomes. É ele quem abre a projeção, explicando sua relação de infância com a cidade de Toritama, em Pernambuco. Em seguida, o cineasta caminha pela cidade, faz perguntas, provoca amigavelmente as dezenas de trabalhadores das fábricas locais. Ele se coloca em cena, tanto na imagem quanto no som, expondo-se em suas motivações, sua abordagem de entrevista, suas escolhas de enquadramento. Gomes explica porque retirou o som de uma cena, porque colocou trilha sonora depois.
Por esta razão, Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar se torna tanto uma observação empática sobre a produção massiva nas usinas de calças jeans quanto um estudo despretensioso e afetuoso sobre o cinema como veículo de memória afetiva. O diretor chega ao local esperando encontrar a calma de sua juventude, mas se depara com a agitação de um capitalismo improvisado e acelerado. Ele se frustra, e faz da frustração um objeto fílmico. Como podem aquelas pessoas trabalhar dezesseis, dezoito horas por dia e não se sentirem cansadas, nem frustradas com a vida que levam? Como podem se declarar tão felizes por estarem “trabalhando mais e ganhando mais”?
O projeto expõe o abismo existente entre duas formas de pensamento tão importantes à compreensão do Brasil atual. De um lado está um artista esclarecido, de posicionamento claramente progressista, que hoje vive na cidade grande e guarda na lembrança uma imagem romântica do Agreste silencioso. Do outro lado, pessoas sem educação formal, de passado miserável, cujo investimento na produção do jeans permitiu um salto veloz na qualidade de vida. É claro que, para essas pessoas, a atividade têxtil, ainda que exaustiva e massificante, representa a melhor alternativa possível. “Para eles, Deus é o dinheiro”, afirma um personagem, com razão. O milagre econômico se substitui aos milagres da fé.
Gomes filma obsessivamente as máquinas de costura em funcionamento, as mãos ágeis operando os tecidos, as calças sendo desfiadas e bordadas, os vendedores negociando preços. Estas cenas, repetitivas, dedicam-se a apresentar de modo um tanto imediato a rotina dos operários. Ao mesmo tempo, o diretor demonstra pudor em adentrar as casas, explorar a intimidade, captar conflitos. Portanto, ele observa as pessoas-máquina, tão gentis e solícitas, em sua vida pública ao invés da privada – talvez pelo fato que, de acordo com o documentário, a primeira se substitui à segunda.
A exposição da cidade de Toritama fornece muitos elementos de reflexão. É possível tecer bons comentários sobre o trabalho dito “autônomo”, que se transforma numa espécie de auto escravidão, assim como no lazer interpretado como luxo, considerado um período de inatividade. Como lembrava Adorno, este raciocínio considera que todo o tempo humano deveria ser dedicado ao trabalho, definindo o ócio como uma pausa, uma “concessão” ao tempo produtivo, ao invés de um direito humano fundamental. No entanto, esses comentários precisariam vir do próprio espectador, uma vez que Gomes se recusa a transformar o material num estudo sociológico. Seu interesse permanece na esfera dos afetos e das relações interpessoais.
A respeito do lazer, o espectador pode aguardar com certa ansiedade o Carnaval prometido no título, a única oportunidade anual de se liberar com o mesmo furor que se dedicam às jornadas nas fábricas. Ora, a interrupção das máquinas ocorre bem tarde na narrativa, e seu papel será tão rápido quanto discreto. Gomes, por receio de intrusão, não segue as famílias rumo à festividade, mas pede para que filmem suas experiências com fim de inclusão da montagem final. A apropriação destas cenas poderia gerar resultados interessantíssimos (vide Pacific e Doméstica), no entanto a adição dos trechos sobre o Carnaval se revela pouco intrigante, sem estabelecer uma comunicação frutífera com as imagens anteriores.
Mesmo assim, Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar comprova a possibilidade de se apropriar de um material de evidente cunho sociológico e político para desvendar o aspecto humano. Gomes está à caça dos sorrisos, das piadas, dos instantes leves em que os gatos pulam sobre a produção de roupas ou a criança cisma em tratar a máquina de costura como brinquedo. O diretor busca as pessoas mais carismáticas, aquela única que se recusa a produzir calças ou o outro que diz preferir a felicidade ao dinheiro. Onde a maioria veria apenas máquinas, o diretor enxerga poesia.
Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.