Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Greta

Acabou o tempo

por Bruno Carmelo

O filme se abre com uma visão pouco animadora do Brasil atual. Os personagens são os marginais da contemporaneidade, os sobreviventes de um sistema falido: um enfermeiro gay de 70 anos de idade (Marco Nanini), solitário, que costuma se envolver emocionalmente com os pacientes do hospital; um ladrão que acaba de matar outro homem a punhaladas (Démick Lopes), buscando um local para se esconder, mas também um pouco de carinho; uma mulher transexual (Denise Weinberg) que pressente o fim devido a uma doença e deseja morrer em cena, se apresentando, por não enxergar mais sentido na vida.

Greta não é um filme desesperado, nem excessivamente dramático, embora transborde em cada imagem uma dose de melancolia. Os personagens se relacionam por necessidade ou carência, o que se traduz num sexo frequente e paliativo, jamais motivado por amor. Na trama, Pedro (Nanini) oculta Jean (Lopes) em seu apartamento enquanto teme perder Daniela (Weinberg). Eles têm apenas um ao outro, e os laços que os unem são frágeis, podendo se romper a qualquer momento. Não existem outros amigos, familiares, colegas de clube ou igreja. Estamos falando de uma multidão anônima: Jean parece sequer estar sendo procurado de verdade, enquanto Jean oculta suas infrações no hospital sem grande esforço. Afinal, ninguém se importa com eles.

“Acabou o tempo, viu?”, afirma Daniela a dois clientes de um motel. A frase poderia se aplicar a todos os personagens em cena. O principal mérito do projeto é o teor tão crítico quanto empático, traduzido em belas cenas da cidade de Fortaleza refletida no vidro do quarto durante uma conversa, ou uma cena de sexo entre dois personagens na cama. O diretor Armando Praça demonstra apreço pelos planos fixos nos quais o espaço fora da imagem diz tanto quanto aquilo que é enquadrado. No sexo, um fragmento dos corpos sugere a penetração logo ao lado; durante a fuga do hospital, o plano próximo de um carrinho de lavanderia representa todos os personagens ao redor do objeto. Quando duas pessoas conversam, observamos o rosto de apenas uma delas. A solidão também é ilustrada por essa fragmentação, a ausência de reciprocidade das comunicações, típica do plano e contraplano.

Apesar da terna ambientação, alguns elementos prejudicam o resultado. Muitos diálogos são escritos demais, ultrapassando o registro oral, e a metáfora sobre Greta Garbo é utilizada em excesso por um personagem que poderia simplesmente estar assistindo a um filme da atriz ou ter os seus cartazes na parede, ao invés de verbalizar frases de efeito com frequência. Do mesmo modo, a escolha de uma atriz cisgênero para interpretar uma mulher transexual é contestável. Praça se defendeu em Berlim, dizendo que escolheu Gretta Sttar para interpretar uma mulher cis, o que equilibraria a escalação e comprovaria que qualquer mulher poderia interpretar qualquer papel.

Ora, esta lógica teria sentido se estivéssemos num contexto em que mulheres trans já ocupassem todos os papéis trans, não precisando portanto ser reduzidas a estas personagens. Em pleno 2019, transexuais sequer ocupam papéis de transexuais, o que justifica que interpretem no mínimo estas personagens, para também interpretarem outros. Na configuração final, a talentosa Weinberg, atriz cisgênero, ocupou um papel de destaque que poderia ter conferido merecido protagonismo a uma atriz trans. Já Gretta Sttar, trans, foi escalada para um papel menos importante dentro da narrativa.

Exceto por esta questão, essencial numa obra que defende os marginais e a diversidade sexual e de gênero, Greta demonstra o melhor tipo de ousadia que se poderia esperar de um projeto do tipo: o fato de tratar com naturalidade, sem fetiches nem senso de espetáculo, o amor entre pessoas desprivilegiadas. Praça filma o sexo como quem filma um abraço. Vivemos em tempos que o afeto pode ser uma força subversiva e, espera-se, transformadora.

Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.