Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
Seus Ossos e Seus Olhos

Percepção e memória, corpo e palavra, vida e cinema

por Renato Furtado

Contém spoilers.

Percepção e memória são a mesma coisa, separadas por uma temporalidade distinta, mas permanentemente intercambiáveis. As palavras, ainda que compostas de maneira diferente no texto original, são de Henri Bergson, filósofo francês que mergulhou na questão das recordações humanas em sua jornada para compreender o tempo, ou mais especificamente sua duração. Em "Matéria e Memória", o Nobel de Literatura evoca a fotografia para delimitar a conexão intrínseca entre o que vemos e o que já vimos. Uma lembrança seria, portanto, um congelamento de um presente que já se foi; a questão, entretanto, é que a, todo momento, o atual mescla-se com o registrado que, por sua vez, "mancha" o agora. A memória é, enfim, uma coisa viva, muito distante do senso comum que acredita em sua imobilidade, uma ideia que inteligentemente permeia toda a sinuosa estrutura de Seus Ossos e Seus Olhos, segundo longa-metragem de Caetano Gotardo (O Que Se Move), produzido ao longo de 9 anos.

Contudo, mais do que questionar qual é o lugar da memória no contexto viciado da hiper-velocidade das redes sociais, e da crise da preservação do passado no Brasil — marcado pelos trágicos e recentes incêndios de alguns de nossos museus, como o Nacional (2018), no Rio de Janeiro, e o da Língua Portuguesa (2015), em São Paulo —, o poético, sensível, minimalista e concreto drama também penetra outras perguntas espinhosas e traiçoeiras: Qual é o lugar das palavras? Qual é o peso das coisas não-ditas? Para onde vão os afetos não digeridos, sejam eles bons ou venenosos? O que significam os discursos, o que eles escondem, o que deixam entrever, o que dizem, apesar de não querer? Como a linguagem modifica o olhar, seguindo a famosa anedota da cor azul, que modificou até mesmo a cor do céu aos olhos das pessoas quando foi inventada? O que vem primeiro: os nomes ou as coisas para as quais eles apontam?

São interrogações enormes, certamente, mas que são encaradas à altura por um roteiro intrincado de fundo quase literário que fornece aos seus atores uma série de monólogos labirínticos e muito difíceis que só aumentam o descompasso entre som e imagem. Em Seus Ossos e Seus Olhos, é raro encontrar instantes onde a câmera significa as falas e vice-versa; constantemente apontando e indicando para algo que está além — um extra-campo, um contraplano não visto —, o longa nos faz preencher as lacunas que propõe, elevando a palavra ao patamar de protagonista. O flashback, técnica recorrente no cinema desde a era do realismo poético francês dos anos 1930, não existe aqui. O que há, de fato, é uma disciplina estética, um rigor visual da fotografia assinada por Flora Dias que mantém a câmera fixa para permitir que os corpos formem e reformem o enquadramento, em sempre novas e belas composições naturais que demonstram como a coreografia dos gestos muitas vezes trai o que é concretizado pela fala.

É a dura negociação permanentemente tensionada entre a tríade corpo-palavra-memória que constitui o trio de cenas principais do drama, baseado nas relações estabelecidas pelo personagem principal, o diretor de cinema João, vivido pelo próprio Gotardo, com três figuras cruciais: Irene (Malu Galli), sua amiga; Álvaro (Vinicius Meloni), seu namorado; e Matias (Carlos Escher), o breve amante que o cineasta conhece no metrô, em uma tarde qualquer. São enganos, encontros, desencontros, idas e vindas capturadas ora em closes belíssimos e poéticos, ora em planos de conjunto que revelam como esta película pretende emular a natureza da própria memória em si: ocasionalmente confusa, misteriosa e elusiva, cujo significado não se oferece de imediato — pelo menos não sem uma reflexão —, por mais que o ato de lembrar seja tão particular à humanidade. E quando acreditamos ter finalmente apreendido Seus Ossos e Seus Olhos, da mesma forma como fazemos com as nossas recordações, o filme nos dá uma rasteira.

Instaura-se, repentinamente, um corte bruto que altera absolutamente tudo apresentado até então pelo drama, um punhado de frames que compõe possivelmente a sequência mais curta frente aos vários planos-sequência do projeto: João está em uma sala de mixagem, montando seu próximo longa, mais especificamente uma cena que nós mesmos já havíamos visto, aquela em que o realizador visita sua amiga, logo no início da projeção. Os eventos, entretanto, ocorrem de forma distinta, traindo a memória que acabáramos de construir, fazendo com que toda a poesia, o diário de Irene e suas canções não dançadas com seu ex-amante ganhem outra cor. A partir de então, o drama penetra outra camada, complexificando ainda mais seu rumo ao escancarar o que já estava posto desde o início, ainda que de forma nublada: a luta eterna entre fabulação e verdade é expressa, diariamente, pelas oposições formados pelo dito e pelo não-dito; pelo lembrado e pelo visto; e, por fim, pela vida e pelo cinema. binômios dito e não-dito; lembrado e visto; e, por fim, vida e cinema, particularmente como um artista bebe da fonte de suas vivências para criar ficção.

Começa, em seguida, uma repetição de ocorrências que ressignificam um roteiro que já conhecemos: vimos um filme sobre um homem ou um filme dentro de um filme baseado nas vivências deste homem, utilizadas para criar sua ficção? Falas trocam de ordem, diálogos mudam de corpo, encenações inéditas, porém evidentemente reaproveitadas por desígnio do script, alteram até mesmo os próprios personagens e seus posicionamentos dentro da obra. João, por exemplo, conta e reconta a história em que se depara com um menino de rua, que pede que compre para ele dois produtos: primeiro uma caixa de chicletes, depois um pacote de fraldas. O que é relevante aqui é perceber como se reconfigura a postura do cineasta que antes se nega a dar o dinheiro e, posteriormente, retrata-se, ao menos perante sua própria consciência abalada. Ou ainda no caso da história da menina que cai do palco, durante uma aula de teatro, e finge estar desmaiada: era Álvaro seu professor ou era uma de suas parceiras de cena na peça que está montando?

Estes são mistérios — incluindo o caso do celular: com quem, afinal, João fala ao telefone com tanta raiva, violência e angústia? — que Seus Ossos e Seus Olhos sabiamente deixa pairar no ar, sobre o julgamento de seus espectadores. Mas apesar de todas as suas riquíssimas linhas de diálogo, que oferecem oportunidades perfeitas para todo o elenco brilhar, as palavras não são formas maciças, como João provoca antes de encontrar-se com Irene em duas ocasiões distintas. Aqui, as respostas são menos importantes do que o que as questões provocam em nós. O ponto, acima de tudo, é como este drama nos faz sentir, como ele nos tira do centro e que afetos provoca em sua plateia — principalmente no que se refere ao aspecto corporal, que evolui inteligentemente para um registro profundamente influenciado pela dança contemporânea e pelas artes performáticas. Do início ao fim do longa, marcado por um vídeo feito no celular, de uma jovem menina dançando sozinha, o que Gotardo deseja é nos movimentar e nos desafiar.

O único deslize deste maduro trabalho talvez seja justamente o fato de encontrar, em si mesmo, o seu maior obstáculo, soando eventualmente enamorado em demasia por suas próprias ideias e caindo em diversos excessos que não necessariamente apoiam uma melhor compreensão de suas intenções. A repetição de cenas, por mais que seja sempre relevante, encerra-se em uma espécie de insistência que, mais cedo ou mais tarde, traduz-se em uma exposição exaustiva de conceitos. É, enfim, um reforço temático que estende a duração além do necessário e que até mesmo perde a chance de encontrar um desenlace perfeito naquela que é uma de suas sequências mais triunfais, o diálogo reprisado no interior da bela arquitetura da Pinacoteca — um museu, é claro, não poderia ficar de fora de uma obra tão preocupada com a memória. Seus Ossos e Seus Olhos estabelece, assim, uma temporalidade muito particular que prova ser, ocasionalmente, árdua, demandando doses de paciência da parte de seu espectador.

Mas isso não fere o resultado final do filme, especialmente porque a montagem, realizada a toque fino por Gotardo, é sempre fresca e instigante em suas justaposições temporais. Evocando o cinema de dúvidas, memórias e repetições de cineastas como Abbas KiarostamiHong Sang-Soo e Chris Marker, Gotardo faz valer a quase década que o separou de sua estreia nos longas para este seu segundo esforço nas narrativas de maior duração. Simultaneamente pessoal por conta de suas tramas intimistas e universal por tangenciar uma crise — que passa tanto pela incapacidade de constituir novas memórias frente ao esquecimento, quanto pelo atual caráter cambiante da verdade, atacada pelas fake news — global, este é definitivamente um trabalho que anuncia um realizador com muito a propor daqui para frente. Empregando a sutileza e a delicadeza como suas "armas" de maior impacto, Seus Ossos e Seus Olhos abre questionamentos que prometem ecoar por bastante tempo na cabeça do espectador.