Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Fotografando a Máfia

O sucesso cansa

por Sarah Lyra

Letizia Battaglia é um daqueles personagens que parecem fruto de uma obra de ficção, tamanha é sua força e coragem diante de um cenário absurdo, que, em um mundo ideal, só poderia ser inventado. É difícil imaginar como ela, no auge da Cosa Nostra, nos anos 1970, conseguiu não só expor em imagens os crimes da máfia, mas também se manter viva para contar a história completa. Para entender Battaglia, deve-se partir da premissa de que trata-se de um ser diferenciado, no sentido de possuir uma lógica transgressora que vai muito além das normas e costumes impostos pela sociedade. Em Fotografando a Máfia, de Kim Longinotto, temos acesso à mente inquieta, criativa e filosófica de uma artista que jamais consegue enxergar o mundo sob a ótica do conformismo.

Mesmo agora, com 84 anos, Battaglia ainda sofre com os horrores daquela época, o que fica evidente apenas nas entrelinhas de algumas de suas falas. “Sonhava em queimar meus negativos”, diz em certo momento; “compartilhar a dor alheia é constrangedor”, completa em outro. Presa a uma alma atormentada, a fotógrafa seguiu por anos em sua luta para desmascarar a máfia de maneira quase instintiva, sem qualquer tipo de planejamento prévio. Como ela mesmo diz, talvez ser um “pouco louca” ajude nessas horas. Através de depoimentos com a artista, imagens de arquivo da época e fotografias de Battaglia, o documentário constrói uma eloquente narrativa sobre os fantasmas que até hoje assombram toda uma geração da Itália.

O roteiro linear e com uma ágil recapitulação sobre a criação católica de Battaglia ganha força especialmente quando decide inserir ex-amantes da fotógrafa como maneira de ilustrar seu desprendimento em relação às regras. Chama atenção a leveza e o bom humor com que ela e seus namorados do passado revelam detalhes sobre as relações, divergências e os consequentes términos. Exemplo disso é o fato de a protagonista e seus convidados não verem problema algum em falar abertamente sobre adultério ou qualquer outro estigma social, incluindo o namoro atual com um homem 38 anos mais novo e obcecado por travestis, segundo descrição da própria Battaglia.

A investigação sobre a trajetória desta notável mulher e a maneira como sua história se confunde à da máfia é ilustrada até mesmo no período em que ela, cansada de conviver diariamente com a violência brutal, decide parar de fotografar. Mais revelador ainda é perceber que mesmo a retirada das ruas gerou um conflito interno em Battaglia, o que fica evidente em seu discurso de que as fotos que não tirou, em momentos tão opressores que não soube como agir, são as que mais machucam mesmo hoje. “Deveria ter tirado, sinto que o desrespeitei”, diz ela sobre não ter registrado a morte de Giovanni Falcone, juíz responsável por condenar à prisão centenas de membros da Cosa Nostra e que foi assassinado em uma explosão.

Ainda que se alongue na lacuna gerada pelo período sabático da fotógrafa, a ponto de em alguns trechos parecer um filme sobre a máfia, e não sobre Letizia, Fotografando a Máfia apresenta um discurso de recorte bem delimitado, evitando cair no sadismo e na tentação de se estender em um assunto que certamente gera fascínio em seu absurdo. Não há beleza ou sacrifício válido na violência, e Battaglia é a prova disso. Embora seus feitos tenham valor para o mundo, para ela só trouxeram perdas e dores irreparáveis. Não há um momento mais devastador do que vê-la, diante das câmeras, chegar à conclusão de que nunca foi verdadeiramente feliz, porque, ao fazer o seu trabalho, jamais teve a chance. Longinotto respeita a figura retratada e documenta com honestidade os efeitos psicológicos de uma época que, de certo modo, nunca chegou ao fim.

Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.