Críticas AdoroCinema
1,5
Ruim
Um Inverno em Nova York

Os bons sentimentos

por Bruno Carmelo

Ainda existe espaço, em pleno século XXI, para contos de fada? Histórias sobre princesas entristecidas, perseguidas por alguma maldade ou encanto, até ser salva por um príncipe encantado e viver feliz para sempre? Em tempos de individualismo crescente e descrença nas coletividades, precisamos de uma fábula sobre a importância do amor ao próximo e a inevitabilidade do destino? Cinderela, Branca de Neve, A Bela Adormecida poderiam existir em 2018?

A cineasta Lone Scherfig acredita que sim. Ao invés de propor um cinema contemporâneo sobre valores atemporais, ela investe num cinema à moda antiga, melodramático e orgulhoso de sê-lo. No centro de The Kindness of Strangers há uma princesa, Clara, como em O Quebra-Nozes (interpretada por Zoe Kazan), existe um príncipe, o bondoso e casto Marc (Tahar Rahim), uma fada madrinha que faz o bem sem olhar a quem, Alice, como no país das maravilhas (Andrea Riseborough), um vilão perverso, Richard (Esben Smed) e alguns coadjuvantes divertidos para aliviar o drama: Jeff (Caleb Landry Jones), John Peter (Jay Baruchel) e Timofey (Bill Nighy). Existe até um palácio, o Winter Palace, restaurante onde se encontram os protagonistas.

Talvez devêssemos comemorar o fato de a princesa ser uma mulher fugindo dos abusos do marido violento, e o príncipe ser um ex-presidiário - seriam personagens complexos e atualizados, portanto. Mas ela está longe de ser uma figura proativa: depois da fuga inicial, Clara basicamente erra de rua em rua, de abrigo em abrigo com os filhos pequenos, esperando para ser salva. Já ele foi encarcerado injustamente, é claro. O roteiro mantém um ideal de pureza retrógrado, quase religioso: os amores não envolvem sexo nem nudez, as crianças são um poço de gentileza. Mesmo sem evocar presenças divinas, paira nas imagens de sofrimento e na música sentimental uma valorização do sacrifício e da redenção.

Não bastassem essas características, o roteiro está recheado de reviravoltas umas mais improváveis do que outras. Da mulher que pretende se esconder do marido pedindo refúgio ao sogro até um imbróglio absurdo envolvendo fotos da polícia, o drama aposta numa suspensão da descrença difícil de acatar. “Mas é uma fábula”, dirão alguns, e com razão. No entanto, até que ponto o teor fantástico desculpa o descaso com a lógica, a frágil psicologia dos personagens e a inverossimilhança dos diálogos? Quando a fada madrinha grita, exasperada, “Por que vocês não podem apenas ser gentis?”, devemos aceitar como licença poética própria ao universo lúdico?

“Eu sempre dependi da bondade de estranhos”, afirmava Blanche DuBois em Uma Rua Chamada Pecado. Ora, esta fala estava repleta de sarcasmo, cortesia de uma personagem imprevisível. Na obra de Scherfig, não existe qualquer malícia do gênero: os significados estão absurdamente claros, na superfície das imagens. Para tanto, as conversas precisam ser resolvidas em plano e contraplano, a cidade de Nova York é iluminada com um pôr do sol milagroso, a música reforça as tristezas e as alegrias. A construção é simples até demais, duvidando da inteligência de seu público em captar nuances. Pobres Andrea Riseborough e Tahar Rahim, atores excelentes perdidos numa tentativa de humor que derrapa na maioria das cenas.

De certo modo, a diretora foi corajosa ao apostar num melodrama épico nos moldes de Oliver Twist ou Les Misérables. É preciso coragem para defender que a solução para o mundo se encontra nos bons sentimentos, na aceitação das provações da vida e no amor romântico, vistos como caminhos inevitáveis a qualquer um – um direito de cada cidadão, por assim dizer. Não há nada errado nestas mensagens em si, exceto pelo fato de estarem perturbadoramente descoladas da realidade. Nem os novos contos de fada mais literais, produzidos em animação pela Disney ou DreamWorks, por exemplo, adotam tamanho escapismo.

Atenção: possíveis spoilers a seguir.

Por fim, The Kindness of Strangers lida com questões de gênero, de economia, de tecnologia e de evolução social com uma mentalidade dos anos 1950. A ingenuidade desta “desperate housewife” poderia soar conformista décadas atrás, mas ela se torna ainda mais problemática nos dias de hoje. Para piorar, nossa princesa não se emancipa e se livra do perigo, apenas se insere em uma nova estrutura patriarcal, faz compras numa loja cara com seu próprio dinheiro e se muda para um bairro mais chique. Bendita liberdade oferecida pelo consumismo.

Mesmo assim, tão ingênua quanto a trajetória de Clara seria nossa ilusão de que este drama não seja capaz de agradar um número expressivo de espectadores. Existe mercado, especialmente em tempos de crise, para o final feliz e a promessa de amor eterno. Se você gostará ou não da nova gata borralheira, isso dependerá de sua abertura à magia e sua aversão aos aspectos menos cor-de-rosa da violência doméstica, da desigualdade de gênero e da miséria em países ricos como os Estados Unidos.

Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.