Críticas AdoroCinema
2,5
Regular
Aconteceu na Quarta-Feira

Homem dividido

por João Vítor Figueira

Aos 82 anos de idade e com sete lançamentos (somando festivais e circuito comercial) na última década, Domingos Oliveira está em uma fase prolífica de sua carreira de mais de meio século. Em suas produções contemporâneas, o realizador têm se mantido fiel a características que elevaram ao status de clássicos produções consagradas do passado, como a ênfase nos relacionamentos e processos criativos. Aconteceu na Quarta-Feira, que incorpora tais características, é um trabalho irregular ao mesmo tempo em que faz jus à veia autoral do cineasta.

O roteiro de Oliveira acompanha as lamúrias de um casal de atores de teatro formado por Júlio (Ricardo Kosovski), um homem mais velho sem talento para as artes dramáticas que é perturbado por uma série de aflições, e Júlia (Priscilla Rozenbaum), artista magnetizante de talento reconhecido. "Dependo dela", reconhece um inseguro Júlio, mais famoso por seus trabalhos na televisão. Os dois dividem um palco em uma peça consagrada e, em casa, vivem uma relação de amor e ódio. No meio deles está o psicanalista Marco (André Mattos), que dribla a ética profissional ao aceitar contar para Júlia as confissões que o esposo lhe faz durante as sessões de terapia.

Em Domingos, documentário dirigido por Maria Ribeiro, Oliveira afirma que Godard o ensinou a fazer cinema com liberdade, embora, para ele, o francês "não tenha grandes filmes". Aconteceu na Quarta-Feira também não é um grande filme, mas tem seus méritos. As atuações exageradas, especialmente a de Mattos, a direção desarmoniosa e o uso de tipografias que explicam o sentimento do personagem (como se os diálogos não tivessem sido suficientemente claros) atenuam a força de uma obra que trata de conceitos instigantes.

O texto, que sempre foi o forte da carreira de Oliveira, mais uma vez se destaca neste projeto. O longa-metragem tem diálogos e monólogos ricos sobre a arte, as dicotomias entre bem e mal e sobre as angústias dos personagens. As reflexões ganham forma mais robusta quando um doppelgänger de Júlio entra em cena, levando a história para um lado ainda mais complexo de sua proposta de explorar os delírios da mente humana e a pulsão pela morte enquanto um elemento de criação. Visualmente, entretanto, as representações do duplo são um tanto amadoras e a cena do beijo no espelho é quase constrangedora.

As quebras constantes da quarta parede, incluindo uma cena que interrompe os créditos finais para falar direto com o espectador na sala de cinema, são sinais bem vindos de ousadia de um diretor veterano ainda inquieto. O resultado final é desarmonioso. Nem todas as ideias do filme são bem sucedidas. Ao resta a satisfação pelo exercício de autoralidade.

Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.