Perto demais
por Laysa ZanettiAntes de qualquer outra coisa ou de sequer assistir ao filme, duas questões são dignas de nota a respeito de O Escândalo. A primeira é uma reflexão polêmica e longa sobre uma suposta “permissividade” quanto a homens conduzindo (ou seja, escrevendo e/ou dirigindo) histórias sobre mulheres, sobretudo quando envolvem temas tão delicados como assédio. Vai sem dizer que, a princípio, isso deveria estar longe de ser um problema, e que não é saudável ou enriquecedor para qualquer debate determinar este tipo de restrição. A segunda é a questão do distanciamento temporal de uma trama baseada em uma história real. O quão prejudicial é para a própria narrativa dramatizada ela estar tão perto do epicentro de seu objeto de estudo? O que ela não consegue enxergar por não ter o quadro completo? Estes dois pontos acabam sendo essenciais para entendermos por que o filme desperdiça uma história em potencial duas vezes.
Em retrospecto, demorou até bastante para um filme tentar dramatizar os eventos que tomaram conta da indústria do entretenimento a partir de 2016 com a explosão das denúncias contra Harvey Weinstein. Pegando carona nesta Tsunami, o resultado do longa dirigido por Jay Roach e escrito por Charles Randolph é até irônico. O filme tenta trazer à tona o conflito de forças que fez com que fosse tão difícil oficializar a denúncia contra o então magnata da Fox News, Roger Ailes (John Lithgow). No caminho, tropeça em personagens extremamente simplificadas e praticamente isentas de contradição. Nos poucos momentos em que a trama ensaia questionar ou aprofundar Megyn Kelly (Charlize Theron, segura e um dos poucos pontos de luz do filme) ou Gretchen Carlson (Nicole Kidman, protocolar ainda que bem caracterizada), faz pouco mais do que inserir uma ou duas linhas de diálogo expositivas sobre o quanto elas, tão fiéis ao discurso conservador do canal, cresceram na Fox ao longo dos anos apesar de toda a estrutura empresarial sexista que elas jamais contestaram.
Ao invés disso, o que Bombshell (no original) faz é reduzir a figura complexa de Megyn Kelly inicialmente ao posto de injustiçada, posteriormente ao de heroína salvadora das mulheres oprimidas. Gretchen Carlson serve apenas para conduzir a história até os lugares em que ela deve chegar, sem que suas motivações e seus conflitos sejam levados em consideração ou sequer superficialmente abordados. A personagem fictícia Kayla Pospisil, interpretada por Margot Robbie, é um amontoado de clichês que atira para todos os lados tentando criar identificação com qualquer parcela do público que estiver no alvo: onde colar, colou. A ideia de uma cristã conservadora ambiciosa (e certamente hipócrita, por mais de um motivo) é uma que renderia um bom resultado se este fosse um filme interessado em contar a história das mulheres. Mas o resultado é simplesmente uma carta apologética sobre o conservadorismo, sem riscos e didático do início ao fim.
Uma vez que se propõe a abordar Ailes e o império de Rupert Murdoch (Malcolm McDowell), O Escândalo finge ser um filme-denúncia para jogar sempre no campo mais seguro. A fotografia e a direção tradicionais — sobretudo nas cenas dentro da própria sede da emissora — talvez sirvam para reprisar justamente a estética da TV dominada por planos americanos, mas também são muletas que contribuem para uma única conclusão. Se nem roteiro nem direção arriscam ou tentam causar pelo menos um incômodo, não há o que justifique esta trama. As mulheres estão ali apenas para girarem em torno do protecionismo ao redor de Ailes, quer elas estejam a favor, quer estejam contra.
No fim das contas, o grande erro de O Escândalo é tentar contar uma história para a qual não estava preparado e no qual não teve coragem o suficiente para embarcar. Estamos diante de figuras centrais na eleição de Donald Trump e de uma denúncia que veio em um momento crucial, levando em consideração a influência das fake news neste processo. Novamente, isso é algo que o filme apenas finge inserir no roteiro, sem jamais entrar na questão de verdade. Seu grande pecado, neste sentido, é acreditar demais no discurso que tenta vender.
Tudo isso nos leva às duas questões iniciais. O Escândalo não é um filme sobre as mulheres ou sobre a luta feminista que transcende liberalismo e conservadorismo — apesar de ser tachado de “vitimismo” em um enquanto é incentivado por outro. Não é um filme sobre a complexidade, positiva ou negativa, das mulheres que denunciaram Roger Ailes. Não é um filme sobre a cerca que protege grandes magnatas de serem verdadeiramente sabatinados. Infelizmente, é apenas um genérico que pouco acrescenta com o muito que teria a dizer, com um roteiro tão maltratado que esbarra em uma objetificação séria com Margot Robbie e Kate McKinnon e sequer nota. Se salva por grandes atuações, mas só.
Filme visto no 21º Festival do Rio, em dezembro de 2019.