Diretor de Lilo & Stitch arranca lágrimas com animação sobre inesperada maternidade, um forte concorrente ao Oscar tão inovador quanto emocionante
por Diego Souza CarlosImagine acordar em um rochedo à beira mar sem nenhuma lembrança. Suas únicas coordenadas, se assim podemos dizer, são respostas à natureza que parece te empurrar a aprender o máximo de coisas possíveis em poucos segundos para evitar que se junte a animais marinhos no fundo do oceano. É mais ou menos assim que "nasce" Roz, a protagonista de Robô Selvagem, uma máquina que a cada novo frame vai aprendendo a fugir de sua programação e se torna algo próximo de um ser vivo.
Esse nascimento da simpática unidade ROZZUM 7134, que naufraga em uma ilha desabitada, tem início quando ela não apenas precisa aprender a se adaptar aquele ambiente hostil, construindo pouco a pouco relacionamentos com os animais nativos, mas também é pivô de uma tragédia que envolve um filhotinho de ganso órfão.
Em um momento posterior ao lançamento de Divertida Mente 2, que chegou como um sinal verde para a produção de inúmeras sequências de grandes estúdios - já temos Frozen 3 e 4, Shrek 5, Toy Story 5 e Os Incríveis 3 oficializados até o momento -, assistir a histórias originais é sempre um frescor. Ainda que seja uma adaptação do livro homônimo de Peter Brown, posso dizer que essa história ganha muita potência narrativa nas mãos da DreamWorks.
Como é bom fugir do hiper-realismo!
Dizer que Homem-Aranha no Aranhaverso mudou a indústria cinematográfica é chover no molhado, mas é muito difícil não citar o longa da Sony Animation quando existem tantos expoentes que aprenderam com o projeto. Robô Selvagem não é um caso tão óbvio, pois não utiliza o mesmo estilo gráfico do filme estrelado por Miles Morales, mas é uma demonstração da DreamWorks do desenvolvimento da textura explorada em Gato de Botas 2: O Último Desejo e Os Caras Malvados.
A animação reutiliza o software responsável por dar um frescor às produções do estúdio, mas dessa vez o foco é enriquecer a floresta onde a maior parte da história acontece como se fossem pinturas em movimento. Um exemplo disso são as sequências que envolvem água e fogo: a profundidade está ali, mas a forma como o mar, a chuva e uma fogueira interagem nas cenas são como se pinceladas fossem adicionadas manualmente à estrutura da imagem. Mas não pense em Com Amor, Van Gogh, imagine uma mistura do CGI comum com os traços citados.
A textura dos personagens conversa com as paisagens através da interação entre o 2D e o 3D, permitindo não apenas que os pelos dos animais sejam responsivos ao vento, mas que tudo o que compõe cada sequência ofereça um quadro de encher os olhos. É quase como se pudéssemos colecionar pequenas pinturas a cada piscada durante uma hora e quarenta minutos. O estilo ainda é enriquecido com a expressividade de cada ave, roedor e predador que surge na trama, principalmente pelo aspecto cartunesco do gestual e do olhar.
Wall-E e O Gigante de Ferro têm um filho
Começar a assistir a Robô Selvagem é quase como um exercício de repertório, pois a animação bebe em diferentes produções famosas, de longas antigos como O Gigante de Ferro, Procurando Nemo e Wall-E a entradas mais recentes como Meu Amigo Robô. Com exceção da história que se passa no fundo do mar, todos estes projetos nos fizeram criar grande afeição com um tipo de droide que gradualmente passa a ter ações quase humanas. Aqui, isso não é diferente.
Com elementos que já foram usados milhares de vezes em narrativas do gênero, o longa consegue equilibrar traços conhecidos se esquivando sempre que pode do clichê. O uso de um humor sádico e eventualmente mórbido, por exemplo, ajuda a história avançar de maneira convincente. Isso porque enquanto o estilo animado foge do hiper-realismo, o enredo se apega ao contraste, abusa da linguagem e tenta mostrar ao público que a jornada de Roz tem um pezinho na realidade (ainda que nem todos eles fiquem intactos).
A forma como o reino animal é retratado, de maneira quase crua, é parte disso. Existem piadas inesperadas para um filme infantil que naturalizam a morte, pois é assim que a vida na natureza funciona. Da mesma forma, a animação também se compadece desse fato enquanto abraça um lado completamente fraternal e usa todos os seus recursos de fofura para atingir a audiência com ondas emocionais contínuas.
Uma grande diferença no roteiro, em comparação à obra literária, está justamente em um dos momentos mais lindos do filme. É quase como se Peter Brown tivesse entendido que o poder narrativo de uma simples ação pode ter um impacto muito maior se estiver vinculado ao ápice de sua própria história. Isso porque o escritor foi responsável pelo roteiro ao lado do diretor Chris Sanders (Lilo & Stitch).
Robôs podem amar?
Assim como qualquer tipo de afeto deixa tudo mais colorido em nossas vidas, o encontro entre Roz e Bico-Vivo é onde está o coração de Robô Selvagem. Apesar de não ser tão distante do início do filme, é curioso como a presença do filhote de ganso na vida da droide também muda a perspectiva de quem está assistindo. A floresta deixa de ser tão ameaçadora para se tornar mais viva e menos hostil (só um pouco!).
Somada à narrativa visualmente deslumbrante, sua grande força está em unir a sutileza fornecida pela inocência robótica da protagonista a temas universais que vão fazer os olhos de adultos e crianças se inundaram mais de uma vez. Quando usa o ótimo material do livro de Peter, vemos o poder do cinema se concretizar ao assistir um ser sintético se aperfeiçoando para dar vazão a termos muito complexos da humanidade. Gradualmente, a cada novo desafio, Roz não apenas abraça a maternidade, como ensina aos demais animais valores importantes sobre solidariedade, gentileza, inclusão e respeito.
É estranho receber esses ensinamentos de uma inteligência artificial, quando há humanidade, se assim podemos dizer, na personalidade dos animais que conhecemos. Mas ela se torna um veículo para que diferenças sejam deixadas de lado. Uma jornada emocional, o filme dispõe de cenas carregadas de cores e simbologias - das aulas de voo do Bico-Vivo aos momentos em que vemos a concretização de Roz como uma verdadeira robô selvagem.
Existe um aspecto que também precisa ser mencionado, que é a dicotomia entre ver o reino animal ser violento e deixar os fracos para trás ao mesmo tempo em que a animação mostra que cada diferença é o que nos torna únicos. Esse tipo de dinâmica enriquece a trama com abordagens simples a temas densos. Inclusive, além das alegorias a identidades minoritárias da vida real, ainda temos uma representação simples e poderosa sobre a adoção.
Ao fim, Robô Selvagem oferece uma das melhores experiências cinematográficas da temporada. Com seu estilo gráfico inovador, que atualiza a linguagem com imagens grandiosas, o filme consegue equilibrar contrastes a partir do que é incomum e inesperado, seja pelo humor ácido ou por ver uma robô se tornar uma mãe, uma amiga e uma protetora. Nos minutos finais, em meio a potenciais lágrimas, a maior parte do público vai acreditar não apenas que a protagonista pode ter sentimentos reais, como muitos acreditarão que se trata de uma forma genuína de amor.