Vale a pena ver de novo?
por Renato FurtadoOs litros de sangue não estão lá e os palavrões mais pesados, impróprios para os mais jovens, são bipados até a própria censura tornar-se uma divertida piada recorrente. As sequências que os fãs já conhecem seguem praticamente inalteradas e as novas adições — ou alterações — são boas o suficiente para aprimorar o produto final. E ele, o Mercenário Tagarela (Ryan Reynolds), a estrela controversa, não perdeu sua essência, mesmo com o volume amansado. Mas apesar de tudo, e apesar de ser até mesmo uma reprise, Era uma Vez um Deadpool é um dos filmes mais confusos de 2018.
Por ser centrado ao redor dos mesmos arco e progressão narrativos de Deadpool 2, é virtualmente impossível não comparar as duas versões da produção comandada por David Leitch. Sendo assim, esta releitura estilo “conto de fadas” tem maior sucesso, principalmente porque adiciona o ator e diretor Fred Savage. O menino, que nos anos 80 ouviu a história de A Princesa Prometida, contada por seu avô, agora cresceu para ser um homem sequestrado e amarrado à réplica da mesma cama de A Princesa Prometida — em uma réplica do mesmo cenário, é claro —, sendo forçado a acompanhar a trajetória de Wade Wilson, que está determinado a provar que Deadpool 2 é um "filme para toda a família".
Afortunadamente, a relação entre os dois, figura real e personagem, cria um choque de personalidades que só ressalta o caráter metalinguístico, autoparódico, mordaz e hilário de Deadpool enquanto entidade sagrada da contemporânea cultura pop na qual foi transformado. Savage, com sua expertise em questões narrativas realça as incongruências do roteiro de Deadpool 2; detona a banda Nickelback; e enfatiza o fato de que o Mercenário Tagarela é Marvel, mas nem tanto — enquanto a transição das propriedades da Fox, compradas pela Disney por uma cifra bilionária, não for concretizada, a empresa original ainda detém os direitos de adaptação do pistoleiro de roupa vermelha. São as inserções da dupla, tecendo comentários acerca do que não é inédito, que ressignificam as piadas, espremendo-as até o fim.
É também por isso que Era Uma Vez um Deadpool e Deadpool 2 são iguais, porém diferentes. Ao passo em que a presença de Savage é a distinção mais clara entre um corte e outro, determinadas cenas antigas ou ganham mais substância através de novidades — como os breves easter-eggs trazendo um "R.I.P. Stan Lee" e uma hilária gag com Up - Altas Aventuras — ou de subtrações destinadas a limpar o todo — caso da batalha final, que é muito mais clara, direta ao ponto e empolgante nesta segunda versão. Se vemos e entendemos melhor a relação entre Wade e os X-Men por um lado, também a montagem, por outro, é mais veloz e objetiva com o corte ou modificação de “gorduras” e sobras — leia-se: obscenidades que eram apelativas até mesmo para Deadpool, como a grotesca cena à la Instinto Selvagem — que atravancavam a evolução do conjunto de um modo geral.
Em uma edição mais curta e “para menores”, Era Uma Vez um Deadpool liberta Deadpool 2 das pressões de repetir o êxito do longa original e apresenta melhor a proposta melodramática da aventura “familiar” de Wade e cia. Indo direto ao ponto na estranha jornada de amadurecimento de Deadpool — arco que é, aliás, o problema fundamental do segundo filme — e envelopando melhor o aspecto dramático com uma condução repaginada, este “conto de fadas” faz rir mais e funciona melhor: agora, as cenas funcionam a serviço do avançar da trama e da coerência, e não das piadas, como anteriormente. Então qual é o problema de Era Uma Vez um Deadpool? Se a pergunta parece complexa, a resposta não é, pelo contrário: o que pode confundir neste longa remodelado e recauchutado é a sua própria existência.
Não é incomum que cineastas exibam versões de trabalho de suas obras para remontá-las após as reações dos críticos — o diretor David Mackenzie o fez, por exemplo, com seu épico Legítimo Rei, removendo 20 minutos do corte original depois de uma morna recepção no Festival de Toronto 2018. Também é prática usual em Hollywood, e no mundo todo, realizar sessões focais, em que edições de teste de um projeto são apresentadas ao público para medir as respostas dos espectadores em relação ao que foi visto nas prévias e fazer as modificações julgadas necessárias. Era Uma Vez um Deadpool, no entanto, estreia em circuito apenas sete meses após Deadpool 2 — que também foi lançado comercialmente e não exibido em caráter exclusivo para uma plateia seleta de um festival ou de um grupo focal, por exemplo. Os dois projetos são o mesmo filme, porém embalados de forma distinta.
Portanto, a questão que se coloca é a seguinte: será que Era uma Vez um Deadpool poderia estabelecer um novo modelo de distribuição baseado na reparação retrospectiva de erros/equívocos elencados posteriormente ao lançamento do corte original, seja pelos espectadores, seja pelos críticos? Finalizar um longa-metragem é uma tarefa das mais complicadas, dado a quantidade de processos envolvidos na feitura de um projeto audiovisual desta envergadura, particularmente no sistema de estúdios de Hollywood; de qualquer forma, seja o resultado amado ou odiado no fim das contas, o resultado concreto e derradeiro é o resultado concreto e derradeiro. Era uma Vez um Deadpool, desse modo, poderia abrir um precedente problemático: se o público ou a crítica não aprovarem uma determinada produção, não há com o que se preocupar — basta esperar e retornar alguns meses depois aos cinemas para conferir a retificação.
Outro ponto de preocupação diz respeito mais ao personagem Deadpool do que à franquia homônima e seus bastidores. Como o primeiro herói para maiores de 18 anos a realmente ter sucesso em larga escala nas telonas, o Mercenário Tagarela de Reynolds explorou um filão até então ignorado e/ou temido pelos executivos de Los Angeles — até Deadpool, o filme, desbravar o complicado território e arrecadar impressionantes US$ 783 milhões globais. Este "conto de fadas", por sua vez, praticamente reverte a conquista, realocando seu foco de um público-alvo restrito — que pode ver, de acordo com a classificação indicativa, materiais mais pesados — para o público-alvo mais amplo possível. A afirmação de Wade Wilson talvez faça sentido neste contexto: se Deadpool é realmente Marvel, agora também é 100% Disney, por consequência direta. Talvez por isso a ideia de aparar as arestas e (tentar) agradar a todos.
No fim das contas, Era uma Vez um Deadpool é mais problemático por fatores externos do que por causa da produção em si — e é preciso prestar atenção nestes detalhes além-filme no decorrer dos anos. É bom que o "conto de fadas" exista dentro da perspectiva de que esta releitura é uma sequência mais digna para o hit Deadpool do que o próprio Deadpool 2. Por outro lado, era realmente necessário requentar o que já foi servido ao público anteriormente?