Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
Pássaros do Subúrbio

Lapsos de memória

por Bruno Carmelo

De acordo com a sinopse oficial, um engenheiro encontra o diário de uma criança e descobre, nas histórias escritas, a separação de um grupo de amigos. Assim, passa a repensar sua própria trajetória. A premissa é interessante, ainda que seja difícil encontrá-la com tamanha clareza no projeto chinês. Pássaros de Subúrbio move-se por esquetes de ligação mínima umas com as outras, privilegiando a formação de sugestões a uma relação estrita de causa e consequência. Em outras palavras, a relação entre os conflitos e as temporalidades pode, ou não, ter ocorrido. Ao diretor Sheng Qiu, os fatos importam pouco.

As imagens, por outro lado, chamam atenção por uma estranheza que não para de se desenvolver e se aprofundar. A trama dos adultos e a trama das crianças possuem estilos diferentes: no primeiro caso, os personagens são colocados no centro da imagem em formato próximo do quadrado. As imagens se baseiam em planos fixos, com alguns zooms agressivos reorganizando o enquadramento no meio do plano. Para as crianças, a câmera move-se livremente, atravessa planícies, filma a natureza ampla. A vida adulta é vista como algo codificado, engessado, enquanto a experiência da infância permite liberdade e um sentimento de exploração. De qualquer modo, os dois estilos chamam bastante atenção a si mesmos, como se o diretor fizesse questão de sublinhar seus estilos ostensivamente distintos.

Os trechos da infância se revelam particularmente bem resolvidos. O diretor explora muitíssimo bem os espaços do subúrbio, com suas construções inacabadas a perder de vista, os destroços pelo chão, a impressão de abandono das crianças numa narrativa sem pais nem mães. A ideia de representar a separação entre os amigos ao longo de uma única tarde, na qual cada um se perde ou abandona o passeio, é excelente porque bem orquestrada pelas elipses da montagem. Já a vida adulta é mostrada de maneira muito mais repetitiva, impessoal, mecânica. Os encontros de Xia Hao (Mason Lee) com uma mulher pelos corredores do hotel são voluntariamente insignificantes. Não há muito amor neste universo de números, cálculos e prédios prestes a serem demolidos.

As brincadeiras do diretor com o tempo constituem ao mesmo tempo a força e a fraqueza deste projeto. Por um lado, são profundamente originais, pegando o espectador desprevenido e sugerindo mais de uma possibilidade de leitura: Xia Hao pode de fato ser o garotinho crescido, décadas mais tarde, ainda que uma cena mostre as crianças e os adultos convivendo na mesma linha temporal. A separação entre os jovens estudantes pode ter de fato acontecido durante uma única tarde, ou então num período muito mais longo. Por outro lado, tamanha liberdade narrativa torna a trama dispersa, por não precisar nenhuma transformação importante na vida dos personagens. Muitos aprendizados podem ter atravessado a vida de Xia Hao, ou talvez nenhum, o que não deixa de provocar certa frustração.

Ao menos, é compreensível que o diretor tente transmitir na estética o caráter lúdico da infância, como se a memória afetiva fosse responsável por versões tão diferentes a partir de fatos idênticos. Pássaros de Subúrbio remete a um álbum de retratos de décadas atrás, que folheamos sem lembrar exatamente o que ocorreu em cada momento, sem conhecer todas as pessoas na imagem, mas com a certeza de que foram consideradas importantes o suficiente para serem eternizadas na imagem. É da mistura de lembrança e esquecimento, ausência e presença, que se faz o curioso material deste drama.

Filme visto na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2018.