Críticas AdoroCinema
3,5
Bom
A Música das Esferas

A poesia da minha família

por Bruno Carmelo

O diretor Marcel Beltrán narra seu próprio documentário. Ele informa o espectador, desde a cena inicial, que seus pais permaneceram juntos durante 35 anos, apesar da resistência da família da mãe em vê-la casada com um homem negro. Esta introdução é marcada tanto pelo estilo sóbrio da narração quanto pela dissociação entre som e imagem: enquanto se ouve o resumo da trajetória familiar, o referente imagético sugere contornos abstratos que, mais tarde, descobrimos provirem do ato de pintar. A representação do laço afetivo ocorre menos pelo uso de documentos do que pela construção metafórica do cineasta-filho.

Esteticamente, A Música das Esferas é deslumbrante. O cineasta combina a delicadeza das imagens com a ousadia dos planos longos, vazios, a exemplo da gigantesca paisagem que se perde na bruma, e da sobreposição de fotos de arquivo. Quem mais encontraria fotos da infância e pensaria em colá-las umas sobre as outras? Ou então testemunharia uma bela conversa intelectual entre os pais e decidiria filmá-los de longe, espiando pelo fim do corredor? Ou ainda ousaria conectar um quadro sobre duas esferas com a configuração dos planetas e a aproximação inevitável destes dois personagens? Existe um pulso firme na abordagem de Beltrán, diretor cujo primeiro longa-metragem não se parece, de modo algum, uma experiência inaugural na direção.

De fato, este é um raro documentário cujo controle das imagens se assemelha à construção fictícia (o que certamente provém da formação na excelente Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba, de onde também saiu o belo documentário brasileiro La Arrancada). O cineasta trabalha com planos fixos, cuidadosamente posicionados para extrair a maior beleza tanto dos espaços e da iluminação quanto dos gestos dos personagens. A câmera se encontra ao mesmo tempo perto demais do casal, porém longe o suficiente para não invadir o seu espaço ou modificar suas interações naturais. Beltrán foge simultaneamente ao intervencionismo e ao fetiche de espiar estas pessoas sem o conhecimento das mesmas. Os personagens estão claramente cientes da presença da câmera, apenas não se importam com a mesma – fator certamente decorrente da intimidade familiar.

No entanto, A Música das Esferas não deixa de se inscrever no cansativo subgênero do documentário familiar, que costumava soar humilde décadas atrás, até saturar o mercado documental nos últimos anos. A decisão de combinar narração pessoal e material de arquivo para falar dos próprios pais, tios e avós resulta ao mesmo tempo corajosa (por expor sua história) e confortável demais, pela incapacidade de se interessar por temas que não se encontrem literalmente no quintal de casa. A história de amor entre Regina e Maurício poderia servir como ótimo ponto de partida para se discutir as transformações sociais de Cuba, o racismo nas famílias conservadoras ou ainda o papel marginal dos artistas dentro das sociedades tradicionais (afinal, ambos são pintores).

Ora, Beltrán prefere reduzir o escopo de seu discurso e se ater à história da família, que se torna o ponto de partida e de conclusão para esta história. O cineasta evita torná-los exemplos de qualquer causa, ou instrumentalizá-los para falar de questões que os ultrapassem. Por isso, cita o caso dos pais como se fosse uma história pontual de repercussões sobretudo pessoais e artísticas. Ao invés da sociologia, prefere a psicologia; ao invés das ações concretas, prefere as metáforas (a recriação de fotografias antigas com os pais idosos, a belíssima sequência das engrenagens na usina). Beltrán percebe que sua experiência pessoal está diretamente ligada com à macropolítila de Cuba e Chile, mas evita a leitura sintomática ou determinista. Em sua vertente rigorosamente íntima, corre o risco do risco de se tornar umbiguista, e muito mais fechado sobre si mesmo do que a analogia das esferas celestes poderia sugerir.

Filme visto no 14º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho de 2019.