Críticas AdoroCinema
2,0
Fraco
Retrospekt

A ópera do feminicídio

por Bruno Carmelo

Na primeira cena, Mette (Circé Lethem) entra numa loja para comprar roupas, e testemunha um homem agredindo a esposa nos provadores. Ela tenta intervir, mas é fisicamente ameaçada pelo agressor. A situação se torna ainda mais caótica pelo fato de Mette estar sozinha, grávida, prestes a dar à luz. Para a nossa surpresa, uma espécie de ópera-bufa invade a cena e se substitui aos sons ambientes. A mulher sofre sozinha enquanto cantores líricos entoam a plenos pulmões letras que evocam o seu sofrimento e aquele da mulher agredida.

Esta cartilha se repete ao longo dos 100 minutos de Retrospekt. No fundo, a dinâmica narrativa é bastante simples: Mette, funcionária de um centro de proteção às mulheres, abriga uma vítima de agressão em sua casa e teme pela própria segurança caso o marido desta os persiga. Mas a diretora Esther Rots faz questão de embaralhar as peças na montagem, apostando em múltiplas temporalidades, incluindo uma dúzia de composições operísticas, acrescentando ruídos perturbadores e sons de procedimentos médicos. Sabemos, desde o princípio, que a protagonista se encontrará em uma cama de hospital, sem o movimento das pernas, porém ignoramos a origem desta condição.

Com tantas intervenções estéticas chocantes e explícitas, a diretora busca reafirmar a gravidade da situação de Mette e Lee (Lien Wildemeersch), o absurdo dos abusos domésticos e da impunidade de tantos homens violentos. Ela procura uma estética grave, à altura de seu tema sombrio. Ora, pela sobreposição de tiques e recursos, o efeito se torna óbvio: não há nada mais gasto do que representar perigo pelo som de batimentos cardíacos, ou acentuar a tensão pelo extremo close-up no rosto de suas atrizes. Quando sabemos que as duas mulheres correm o risco de serem agredidas, entra em cena uma canção evocando a agressão iminente.

É curioso imaginar que, se não fosse tão sobrecarregado na pós-produção, se não fragmentasse tanto sua história, o filme forneceria um projeto certamente menos ambicioso, mas também mais eficaz no retrato das dores e inseguranças femininas. Entretanto, Rots prefere reforçar a direção de atores - Lethem, muito expressiva, contorce suas expressões faciais ao limite do paródico -, a direção de arte (os cabelos roxos de Lee representando rebeldia), a direção de fotografia (os enquadramentos cada vez mais próximos, a câmera tremendo durante o acidente). Ao invés de pertinente, a estética se torna redundante, nutrindo uma relação curiosa com o espectador: a cineasta é tão didática em suas escolhas que parece duvidar da capacidade do interlocutor em compreender sutilezas.

Para muitos espectadores, Retrospekt pode funcionar como um chocante retrato do feminicídio e da violência aplicada às mulheres. Caso sirva de alerta, como pretende a direção, terá cumprido o seu objetivo. Entretanto, na busca pelo choque fácil, não deixa de soar um tanto sádico, construindo toda a narrativa rumo a uma cena de violência prometida desde o princípio, mas entregue apenas nos minutos finais, como se fosse a atração principal, a cereja do bolo. Ao tornar a violência mais forte, mais pop e mais sedutora; ao propor uma imersão nas sensações ao invés de um distanciamento crítico, o drama pode ser considerado conivente com as agressões, e portanto contraproducente em sua proposta humanista.

Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.