Críticas AdoroCinema
4,5
Ótimo
A Lenda de Candyman

Os reflexos da opressão racial

por Bruno Botelho

As lendas urbanas surgem do imaginário popular e são alimentadas pelas crenças e, principalmente, pelo medo das pessoas. O Mistério de Candyman (1992) se tornou um clássico cult do cinema de terror ao utilizar o mito urbano de Candyman para trazer reflexões sociopolíticas importantes para a época de seu lançamento, que perturam até hoje nossa sociedade. Quase trinta anos depois, surge sua continuação espiritual: A Lenda de Candyman, dirigido por Nia DaCosta, que se aprofunda na mitologia do filme original e explora a questão racial de forma mais complexa e incisiva. 

Em A Lenda de Candyman, em um bairro pobre de Chicago, a lenda de um espírito assassino conhecido como Candyman (Tony Todd) assolou a população anos atrás, aterrorizando os moradores do complexo habitacional de Cabini Green. Agora, o local foi renovado e é lar de cidadãos de alta classe. O artista visual Anthony McCoy (Yahya Abdul-Mateen II) e sua namorada, diretora da galeria, Brianna Cartwright (Teyonah Parris), se mudam para Cabrini, onde Anthony encontra uma nova fonte de inspiração. Mas quando o espírito retorna, os novos habitantes também serão obrigados a enfrentar a ira de Candyman.

Candyman é um reflexo do racismo estrutural nos Estados Unidos (e mundo)

O Mistério de Candyman teve um papel fundamental na representatividade negra dentro do cinema de terror, especialmente quando olhamos para o gênero slasher – onde pela primeira vez tinhamos um protagonista negro como assassino em série marcante do cinema e até mesmo um aprofundamento maior que outros personagens clássicos, como Jason e Freddy Krueger. O diretor Bernard Rose conseguiu tornar as tensões raciais um elemento primordial de sua narrativa com a protagonista Helen Lyle (Virginia Madsen), uma mulher branca de classe média, indo para Cabrini-Green – um projeto de habitação pública de Chicago – estudar a figura de Candyman. Mesmo com essas discussões, ele ainda é um filme sobre Helen e seu medo em ocupar um espaço negro, enquanto a continuação é um filme sobre a figura de Candyman e quais foram os processos que tornaram ele essa lenda urbana. 

Com a presença direta de cineastas negros na produção de A Lenda de Candyman, o longa consegue abordar a raça em todos os níveis do terror como comentários social. Nia DaCosta, conhecida pelo filme Little Woods (2018), é diretora e foi responsável pelo roteiro ao lado de Win Rosenfeld e Jordan Peelenome de grande importância para o protagonismo negro no cinema atual por causa dos filmes Corra! (2017) e Nós (2019). Assim, a produção ignora as infames sequências Candyman 2 - A Vingança (1995) e Candyman - Dia dos Mortos (1999), funcionando como uma continuação dos eventos originais, mas ambientada nos dias atuais, em 2019. Entendemos que Cabrini-Green passou por um processo de gentrificação – transformação de bairros periféricos em áreas nobres – que renovou o lugar com cidadãos de alta classe. Ou seja, uma tentativa de apagamento da história dos negros que viviam ali.

É interessante a complexidade que a narrativa mostra a figura de Candyman, como uma imagem espelhada do primeiro filme em diversas camadas. O personagem é visto pela sociedade como um monstro e criou-se toda uma lenda envolta de seu nome e sua ameaça. Essa continuação desconstroi esse mito, mostrando que o racismo estrutural que criou a figura de Candyman, onde ele nada mais é que o desejo de vingaça e justiça dos oprimidos contra a sociedade opressora e seu derramamento de sangue inocente. Tudo isso fica ainda mais evidente ao percebermos como o filme dialoga com os protestos antirracistas e o movimento Black Lives Matter que se espalharam pelo mundo contra o abuso sistêmico.

A Lenda de Candyman mostra a violência racial literalmente na pele de seu protagonista

O protagonista Anthony McCoy é um artista visual negro de alta classe que se muda com sua namorada Brianna Cartwright para Cabrini. Precisando de inspiração para um novo projeto, ele começa a investigar a história do projeto de habitação pública de Cabrini-Green, até se deparar com a verdadeira história de Candyman ao conhecer um antigo morador do lugar: William Burke (Colman Domingo). O grande significado da lenda de Candyman é o ódio mais cruel e a soberba que se infiltra em nossa sociedade, coisa que o filme evidencia com a presença de personagens brancos na trama, muitos deles de classe alta.

Nia DaCosta mostra criatividade na direção, usando o slasher de forma pouco convencional, com a sugestão constante do terror e apresentando a figura do Candyman por meio de reflexos na maioria das vezes – especialmente em cenas de violência mais gráfica, o que é um parelelo muito interessante para o surgimento do assassino como reflexo da opressão.

Mesmo com cenas pesadas, ela investe em um clima soturno e obscuro ao longo de toda a produção com auxílio da direção de fotografia de John Guleserian, apostando no drama de Anthony McCoy entrando em contato com seus antepassados e o terror que toma a narrativa e seu corpo em sua progressiva transformação física – mas também psicológica – na figura assustadora do título. O horror corporal (body horror), marcante em produções de David Cronenberg como A Mosca (1986), é usado de maneira interessante como uma metáfora poderosa sobre como o histórico de violência racial consome (literalmente) suas vítimas. Acontecem algumas incongruências, como a demora dele em procurar uma ajuda médica para verificar suas feridas na pele, mas ainda assim o ato final é estarrecedor e impactante.

A Lenda de Candyman é uma continuação que explora de forma profunda a questão racial em um terror brutal e incisivo, mostrando como o racismo deixa marcas profundas nos oprimidos. A diretora Nia DaCosta entende a complexidade desses temas e apresenta a figura do Candyman como uma vítima da violência, assim todos os negros que sofreram as marcas do horror segregacionista. Infelizmente isso não é apenas uma lenda, mas a realidade cruel e cada vez mais atual em nossa sociedade.