Um delicado e angustiante olhar sobre a humanidade
por Diego Souza CarlosA linguagem cinematográfica tem em seu cerne o poder de representar o mundo real de formas variadas, traço responsável pela magia em estar em frente a uma tela. Apesar de ter grandes feitos com base em histórias ficcionais, o cinema também tem uma vasta cartilha de produções inspiradas em fatos. Neste sentido, enquanto documentários tentam captar algo próximo do registro real, outros projetos normalmente se apegam às poesias da realidade, independente do contexto: é neste segundo grupo em que A Sociedade da Neve se encaixa.
A trama acompanha o voo 571 da Força Aérea Uruguaia, fretado para levar um time de rúgbi ao Chile. Durante um momento da viagem, enquanto sobrevoava os Andes, o avião sofre um acidente catastrófico. Apenas 29 dos 45 passageiros sobrevivem à queda. Presos em um dos ambientes mais inacessíveis e hostis do planeta, eles recorrem a medidas extremas para continuar vivos.
Uma nova leitura sobre os fatídicos acontecimentos de 1972, que já ganhou outras versões nas telonas, o longa chega ao catálogo da Netflix baseado no livro homônimo de Pablo Vierci. Representante da Espanha na corrida por uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional, o filme tem direção de Juan Antonio Bayona, cineasta conhecido por O Impossível, Sete Minutos Depois da Meia-Noite e O Orfanato, trabalhos distintos que se unem em um poderoso trabalho de sutilezas.
Tributo e memória
Em uma narrativa passada na década de 1970, nada mais interessante do que estabelecer uma estética única para evocar a época. Através das lentes de Pedro Luque, diretor de fotografia que já colaborou com projetos como Antebellum, Millennium: A Garota na Teia de Aranha e Extinção, A Sociedade da Neve tem as raízes fincadas em todos os aspectos daquele momento. Isso se expressa através de um trabalho bem executado tanto no figurino quanto nos detalhados cenários.
Essas decisões estéticas também se manifestam na atmosfera do longa, em que tudo na tela faz referência à memória daqueles que foram vítimas do ocorrido. Disposto em um ponto do passado, existe a percepção de tributo, a fim de honrar suas histórias, onde o esquecimento é repudiado pela cartilha do roteiro e da direção. Reflexo disso é como, de maneira serena, a citação nominal a cada um que estava naquele avião surge alinhada ao andar da trama.
Ainda em termos de fotografia, é gratificante ver como o cineasta ainda aproveita os aspectos visuais para contrastar momentos-chave da história: é solar quando se faz necessário e gélido através de diferentes camadas. Em uma trama que poderia facilmente se perder na imensidão branca dos Andes, é possível observar o bom uso dos ambientes, com alternâncias elegantes, em fuga de uma monotonia visual. Assim, apesar da melancolia em que se encontram, personagens e público conseguem ficar impressionados com a imensidão montanhosa.
Ainda que tenha um respeito visível na condução do longa, outro aspecto que precisa ser citado é a forma como Bayona também não economiza ao mostrar detalhes do acidente. Assim como em O Impossível, o diretor utiliza alguns minutos do primeiro ato para demonstrar sua eficiência em apresentar uma tragédia cadenciada. Em frente a tantos blockbusters que tornam cenas de ação, se assim podemos classificar, em puro entretenimento, A Sociedade da Neve não erra ao evocar sentimentos latentes de tristeza e horror nesta sequência. Tudo se intensifica, pois desde o início, mesmo com a ciência do que aconteceria, o espectador deixa-se contagiar com um ar de otimismo. Estes dois momentos, inclusive, são o puro “suco” da magia do cinema.
Até as últimas consequências
Uma vez que os sobreviventes se depararam com a nova realidade, passa-se a entender gradativamente como essas pessoas encaram a possibilidade da morte continuar próxima - mesmo sobrevivendo à queda, o que já é difícil, agora precisam lidar com a falta de mantimentos e o frio cruel dos Andes. Enquanto passam a se organizar, existem pequenos acenos ao passado, sem auxílio de flashbacks, e um sutil sentimento de esperança que vaga por alguns.
Ao apresentar o avanço contínuo do tempo, com marcações pontuais sobre o período em que este grupo está preso na neve, há contrapontos interessantes: Bayona sabe explorar momentos em que a situação piora (é como aquele ditado, tudo o que está ruim ainda pode decair um pouco mais), mas também coloca pequenas partículas de otimismo durante a narrativa, seja através de alguma fala ou apenas com um olhar.
Embora a angústia seja o sentimento prevalente durante as pouco mais de duas horas de enredo, o filme deixa claro que algo motivava aquelas pessoas a lutarem até as suas últimas forças. Em trechos avançados, quando a fome já se mostra insuportável, alguns elementos são colocados na mesa a fim de ilustrar um com precisão o que houve. Nestes momentos em que o cineasta espanhol poderia deitar na espetacularização da dor, e até existem sequências que flertam com isso, existem decisões estéticas que não ultrapassam essa linha - seja quando o canibalismo entra em pauta ou quando a urina deles começa a ficar escura.
Um milagre diante da tragédia
Assim como outros filmes de tragédia, principalmente aqueles que se pautam na realidade, A Sociedade da Neve convida o público a se colocar, mais de uma vez, no papel daqueles personagens. Previsto para chegar ao catálogo da Netflix nos primeiros dias de 2024, este projeto será o ponto de partida para muitas pessoas tentarem reencontrar seus “pontos primordiais” da vida. Não que as pessoas precisem esperar uma tragédia para viver, mas o cinema é naturalmente fonte de emoção e pode, com certa frequência, contribuir para mudanças na vida de quem assiste.
Em um ambiente tão belo quanto assolador, estes sobreviventes não se deparam somente com problemas para sobreviver ao frio e à fome, mas também percebem o quão são apenas uma parte de um planeta gigantesco. Curiosamente, enquanto se apequenam diante das montanhas gélidas dos Andes, também encontram entre si o que faz deles seres humanos.
Um desses aspectos está vinculado diretamente à sede de viver, à fé, aos entes queridos que cada um deixou e ao, enfim, ao reconhecimento de que há neles uma alegria em estarem vivos. Ainda que não escape de certos tropeços no ritmo, essa versão sobre os acontecimentos de 1972 apresenta um filme robusto que honra a vida daqueles que são representados ali por um elenco impecável liderado por nomes como Enzo Vogrincic, Simón Hempe e Esteban Bigliardi, atores que capturam de maneira brilhante o desespero de viver ao lado da morte.
Assim como nenhuma dessas pessoas que sobreviveu ao acidente conseguiu retomar a vida como antes, muitos saírão de A Sociedade da Neve com a cabeça cheia de questões sobre o quão pequenos somos diante do mundo e, ainda assim, devem se impressionar com a quantidade de significados que conseguimos estabelecer à vida