Eu acuso
por Bruno CarmeloEste documentário parte de uma tese tão assertiva quanto abrangente: as populações mais pobres do Brasil, Colômbia e México são ignoradas por seus governos que, a pretexto de combater as drogas e a violência, tornam-se os verdadeiros autores de crimes contra os direitos humanos, além de lucrarem com a exploração econômica de seus cidadãos. Letreiros curtos, pouco aprofundados, lançam dados sobre o extermínio de Estado (na Colômbia, por exemplo, 20% da população foi assassinada em 50 anos). Jamais conhecemos as circunstâncias exatas de cada país, mas nos aproximamos das histórias por um senso compartilhado de indignação.
O movimento proposto pelos diretores Alice Lanari e Pedro Asbeg é o da sensibilização através da denúncia. Em 90 minutos, dezenas de casos de pessoas mortas, sequestradas e desaparecidas desfilam pela tela, acompanhados de testemunhos comoventes e imagens em tempo real da violência policial. É difícil não se revoltar com o conteúdo proposto pelos cineastas, especialmente por escolherem três protagonistas tão eloquentes: no Brasil, conhecemos um ativista, morador de um morro, que filma a ação abusiva do Estado; no México, seguimos a atividade de um fotojornalista especializado em confrontos civis; na Colômbia, testemunhamos a trajetória de uma senhora idosa, cujo filho foi assassinado. Por nos situarmos do lado das vítimas, e conhecermos apenas o ponto de vista delas – o filme jamais busca materiais de arquivo ou depoimentos das autoridades -, o resultado provoca fácil sentimento de identificação.
Para um documentário de fundo urgente, envolvido em zonas de risco, América Armada surpreende pela beleza das imagens e refinamento do som e montagem. Os diretores enquadram muito bem, encontram espaço para o silêncio questionador e mesmo para a poesia dos moradores numa comunidade carioca. A câmera está sempre próxima das pessoas, mas parece invisível: ninguém se comporta de maneira artificial devido ao dispositivo fílmico. Criou-se evidente intimidade com estas pessoas, a ponto de se conseguir acompanhá-las de modo atento e discreto. O sentimentalismo que poderia contaminar as imagens, devido à brutalidade do tema, é atenuado pela montagem, que interrompe as cenas antes de chegarem às lágrimas.
Ao mesmo tempo, o projeto se aventura por caminhos questionáveis. O primeiro deles diz respeito à amplitude do tema: ao sugerir que a violência nos três países é equivalente, o filme não consegue justificar as diferenças para nações excluídas desta amostragem. Por que a nossa violência seria diferente da chilena, venezuelana, argentina? A situação das favelas brasileiras certamente difere daquela dos cartéis mexicanos ou das patrulhas de cidadãos na Colômbia, não? O filme une estes países por seus conflitos, mas acaba por esvaziá-los das circunstâncias políticas essenciais à compreensão de seus problemas. Paralelamente, seria importante indagar o efeito provocado pela sucessão de tantos abusos e tragédias. A comparação destas histórias pela montagem e pela função equivalente no roteiro pode provocar uma espécie de generalização, ou banalização das histórias, assim como à conclusão de que todos sofrem, de que a situação nunca mudou, e portanto nunca mudará.
América Armada é muito eficaz no retrato de uma indignação latino-americana, sabendo para onde apontar o dedo - quem acusar e quem defender. No entanto, ele não investiga a origem deste desequilíbrio social e, mais delicado ainda, evita apontar uma maneira de canalizar o ódio contra o sistema. Seria através de vias democráticas (o voto, a formação de associações)? Seria através da arte, como a fotografia e a poesia? Seria através da rebelião armada, como na parte mexicana do filme? Todas essas manifestações seriam igualmente válidas? Partindo de uma constatação eficaz e humana, o resultado se enfraquece ao não conduzir seu espectador até a conclusão de seu discurso. Em tempos de ódio e polarização social, pode ser perigoso provocar incêndios sem fornecer ferramentas para combater o fogo.
Filme visto no 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro de 2018.