Os homens e os monstros
por Bruno CarmeloCerto dia, num vilarejo lituano do século XVII, Hanna (Hani Furstenberg) cria um Golem, criatura da mitologia judaica que esconde poderes sobrenaturais por trás da aparência humana. A premissa invoca uma releitura de Frankenstein, referência assumida pelo filme através das roupas retalhadas do garoto e de sua aparência maquínica – ele não fala nem expressa sentimentos. No entanto, Hanna está longe de ser uma cientista maluca. Ela é apenas uma mãe traumatizada pela morte recente do filho, e transtornada pela pressão social de engravidar novamente. Dentro da comunidade extremamente religiosa onde vive, esta mulher incapaz de dar um filho ao marido é percebida como ingrata, inútil, insuficiente.
O aspecto mais interessante de A Lenda de Golem se encontra em sua construção social. Mesmo seguindo os códigos da fantasia de terror, o projeto funciona ainda melhor enquanto drama, opondo o papel das mulheres ao dos homens, dos religiosos ao dos gentios, dos mais velhos ao dos jovens. Hani Furstenberg e Ishai Golan, intérprete do marido, conferem ao projeto um estofo dramático muito superior à média das produções de gênero que chegam aos cinemas comerciais. Ao descrever o calvário desta mulher oprimida, porém dotada de desejo de conhecimento e de liberdade, o espectador pode compreender as motivações que levam a protagonista a invocar o monstro.
Os diretores Doron Paz e Yoav Paz compreendem um elemento fundamental sobre o terror: o público só pode realmente temer e torcer pelos personagens se estes forem tridimensionais, complexos, ao invés de meras carnes esperando pelo abate. Sem a construção plausível das vítimas, ficamos presos no fetiche da violência nos moldes de Jogos Mortais e O Albergue. Além disso, neste filme israelense, os maniqueísmos são atenuados: o marido, apesar de conservador, está longe de representar um tirano, e mesmo o invasor que chega às terras age de maneira agressiva por pura ignorância científica (ele acredita que os judeus, com seus “feitiços”, estão causando a doença de sua filha).
É muito interessante que o projeto consiga embutir, no que poderia ser uma simples exposição de uma criatura perseguindo inocentes, um debate sobre a busca pelo conhecimento e a quantidade de guerras motivadas pela ignorância e falta de empatia. Quando o Golem de fato executa todas as maldades anunciadas pela premissa, o filme faz questão de equipará-las com as violências humanas: afinal, quem seria mais monstruoso numa guerra? A criança sanguinária ou os camponeses que se matam diariamente? Quem é o verdadeiro monstro, neste contexto?
O Golem, em si, revela-se um personagem bastante complexo. Mesmo com aparência de criança, possui força superior à de muitos adultos. Criado para ser um protetor, ele também pode se tornar agressor. Apesar de ser aparentemente controlável, porque corresponde à criação da mãe Hanna, logo foge às ordens desta. O público é situado diante de um enigma: de que lado, afinal, está a criatura? Seu comportamento errático, retira a motivação maligna para aproximá-lo de uma fera, uma entidade animalesca agindo sem propósito definido. Ele representa, afinal, o ápice da “falta de conhecimento” destes seres humanos brutos e mesquinhos. O Golem nada mais é do que um exagero das qualidades e dos defeitos humanos, ao limite do grotesco.
Felizmente, os cineastas jamais mostram o garotinho atacando inimigos com as próprias mãos: os ataques são sugeridos em rápidos flashes e cortes de montagem, enquanto o garoto mantém a aparência inalterada. Pela aproximação entre sua figura e os ataques, associamos um ao outro, algo que certamente soa muito mais plausível do que transformar a criança numa máquina mortal como proposto em Cemitério Maldito, por exemplo. No entanto, a irrupção da violência exagera nos litros de sangue e cabeças explodindo – uma decisão que certamente produz maior impacto devido ao aspecto naturalista da trama, porém soa exagerada ao limite do cômico. Os diretores retêm o suspense durante tanto tempo que, na hora de entregar os prazeres do cinema de gênero, veem-se na obrigação de sobrecarregar os ataques.
Mesmo assim, cabe ressaltar o mérito de apresentar o garoto aos poucos: primeiro por um túmulo vazio, depois por sombras, em seguida por partes da mão até ele de fato se aproximar de uma criança comum. A Lenda de Golem demonstra evidente preocupação com o ritmo narrativo e a construção das imagens, bem iluminadas e enquadradas em formato scope, de modo a ressaltar a inferioridade de Hanna diante da comunidade ao redor. O discurso se sai muito melhor quando trabalha na chave da sugestão (a bela cena das roupas no varal, o banho do garoto na banheira) do que quando efetivamente incendeia o vilarejo.
Por fim, o desenvolvimento narrativo intricado quase nos faz esquecer do fraco terço inicial, com um flashback particularmente mal dirigido sobre as origens do Golem e uma narração didática, acompanhada de diálogos explicativos. Passada a introdução desengonçada, o espectador descobre menos um cautionary tale (um alerta ao espectador sobre os perigos de “brincar de Deus”) do que uma fábula de sacrifício feminino, sobre uma mãe, esposa e mulher buscando driblar as opressoras regras sociais sem precisar se exilar da comunidade que ama. Esta é menos a história da criança monstruosa do que da “mãe monstruosa”, que um dia se rebela contra os homens dominadores.